Para José Epaminondas Braga, meu avô paterno
Era no tempo de Lampião. Os meninos brincavam do lado de fora da casa. À
tardinha, a mãe achegou-se à janela e mandou-os entrar… que o pai já
ia chegando pra reza e a chuva não tardaria. Os dois largaram as castanhas na
porteira do curral, lavaram as mãos na cacimba e apostaram corrida para dentro
de casa. O pai já se tinha recostado na cadeira, a mãe acendia a vela debaixo
do Sagrado Coração de Jesus e, só então, os meninos sentiram o frio na barriga
que a lembrança causava: seria aquele o dia anunciado?
Cada qual se agarrou ao que
podia, o maior à saia da mãe, o menor às pernas do pai, este e aquela às contas
do terço e todos quatro ao rosário de Nossa Senhora. Creio em Deus Pai… e em
Jesus Cristo… no Espírito Santo… na remissão dos pecados… na vida eterna, mas o
amém ficou suspenso: um relâmpago clareou o céu – quase escuro, que tinha sido
dia nublado e pouco se tinha visto o sol –, os quatro olharam com espanto
para fora e ficaram à espera… “Quando o sol se puser, ao ribombo do primeiro
trovão…”
Mas não se ouviu o trovão e a
reza continuou. Pai Nosso, que estais no céu… seja feita a Vossa vontade… e do
céu a chuva começou a cair… perdoai as nossas ofensas… o segundo relâmpago,
novo suspense, nenhum trovão… e não nos deixeis cair em tentação… mas a chuva
começou a engrossar e a estalar nas telhas… ave, Maria, cheia de graça… e o pai
de olho fechado… bendito é o fruto do Vosso ventre… e a mãe de olho nos filhos…
rogai por nós pecadores… e a chuva estalando nas telhas… agora e na hora de
nossa morte… e nas telhas o medo sem grito… glória ao Pai, ao Filho e ao
Espírito Santo… e a cada clarão o suspense… pelos séculos dos séculos… e a cada
amém o alívio…
O primeiro terço nem havia
acabado quando um dos meninos adormeceu nas pernas do pai. A chuva já estalava
com menos força nas telhas e logo começaria a cair de mansinho. Mal terminado o
segundo Credo, o outro menino adormeceu nas pernas da mãe. O pai levantou,
colocou o primeiro na rede e balançou até assegurar-se de que o sono já se
tinha instalado. Na sala, a mãe continuava por todos vigília adentro. Depois de
ter colocado o segundo na outra rede, o pai voltou para a sala, sentou-se ao
lado da mãe e continuaram juntos rosário adiante… enquanto a chuva se ia
raleando… enquanto a vela se ia consumindo…
… a cabeça despontou para fora
da rede, os olhos espantados interrogaram através da janela. Havia sol lá fora
e o céu continuava azulzinho; o telhado acima da cabeça, inteiro, e as chinelas
abaixo, no piso… acorda, acorda! – e o irmão, primeiro assustado, depois
surpreendido, saltou no chão. Trocaram um abraço, depois um sorriso. O pai e a
mãe tomavam café na cozinha… que Deus tinha ouvido as preces e o mundo
continuava inteirinho! O compadre avisou que tem circo na praça… e os olhos
ficaram pedindo…
À tardinha, saíram os três a
caminho do circo. A mãe ficou em casa… que era preciso agradecer ao Sagrado
Coração a prece atendida. O pai ia passo a passo, os meninos iam de pinote em
pinote. Aqui e acolá, desviavam de alguma poça deixada como vestígio da
véspera… que o mundo não se acabou e isso aqui vai ficar bem verdinho – olhava
o pai para os galhos torcidos… que o fim dos tempos não chegou e o leão vai estar rugindo –
os meninos em frente, o horizonte ao longe, a torre da igreja pertinho…
A cidade caída em ressaca: à
direita, no alto, o colégio do Padre Rolim e o sino batendo… à esquerda,
adiante, o colégio das Dorotéias, silêncio… alguns passos e outros pinotes, a
praça se aproximando… a rua dobrada, quarteirão percorrido… a lona do circo
armada e a bandeirola em cima – o vento bulindo… quem chegar por último vai ser
a mulher do padre… e o pai logo atrás vem sorrindo… mas a lona estava fechada…
e as jaulas, por que escondidas? – Dia de folga, seu moço, os artistas passeiam
no Brejo das Freiras. Os meninos sem graça, chorando… e o pai, no aperreio, assistindo…
Foi, então, que se (ou)viu
logo além, na esquina: o carrinho de mão, o letreiro, a buzina… fon, fon… outro
fon e as lágrimas foram embora… mais um fon, começou a corrida. O pai tomou a
palavra: - o que é que se põe no copinho? E a resposta na ponta da língua: - se
põe gelo, depois o xarope e, por fim, o limão no cantinho… quero um!… quero
outro!… quero três e me faça aquele precinho! O rapaz preparou cada copo com
esmero, seguindo à risca a receita. Terminado o processo, resgatado o custo…
cada qual com seu copo, cada gole…
… um susto! Ai que dor na
cabeça! – gritou o primeiro. Ai que dor na minha também! – repetiu o segundo.
Mas o pai, experiente, sorrindo: não se toma gelado assim… tem que ser devagar,
devagarinho. E os filhos, felizes, enfim. Se o circo estava fechado, o passeio
já tinha valido, porque a mãe esperava em casa e o mundo não ia ter fim… passo
a passo, o pai… de pinote em pinote, os filhos… o colégio em silêncio à
direita… à esquerda, no alto, bem… bem… na calçada, Maria banguela e ao seu
lado, entroncado, Seu João… os meninos cantando assim:
Se coco não tem semente
Nem banana tem caroço,
Borboleta não tem dente
Nem botijão tem pescoço!
E Maria zangada, exigindo
atitude… mas Seu João disfarçando um sorriso entre os dentes… passo a passo, o
pai segue em frente… e os meninos pulando além…
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