Pedro pedreiro, por todos considerado um brasileiro exemplar, nunca chegou a ouvir a poesia que Chico Buarque fez para ele. Não chegou na sua casa um exemplar autografado do LP. A música não tocou no rádio do porteiro do prédio que Pedro pedreiro construiu e não morou. Ah, também pode ter até tocado na TV, mas Pedro pedreiro chegava com tanto sono latente, que depois da sopa de pedras com lingüiça, descansava suas pernas, seus braços, seus ouvidos para o dia seguinte. Que sempre se repetia como o apito cadenciado do trem: o dia seguinte já vem, já vem, já vem, já vem…
Pedro pedreiro nunca soube onde a música sobre sua pessoa tocou – (ou ainda toca?). (Vamos chegar a um acordo em relação aos tempos verbais, daqui pra frente, imaginemos que Pedro pedreiro ainda está vivo, mas por vias de dúvida, usaremos os pretéritos). A música tocou nas melhores rodas intelectuais, da bossa da ditadura nova, entre copos de uísques, camisas estampadas com Chê, sobre blazers blasés. Ao redor das vitrolas, prostrados como budistas em torno de um rinponchê. Lá chamavam Pedreiro, como se fosse um sobrenome de Pedro. Como se ele tivesse, por obrigação divina, essa missão desde o nascimento, mais do que congênita, missão hereditária. Um título monárquico às avessas, um pedigree de vira-latas. Herdeiro do clã dos Pedreiros. Eruditos da pá, do carro de mão, do manejo da brita, da terra, do barro e da colher, obviamente, de pedreiro.
Há quem diga que Chico voltou a falar de Pedro pedreiro noutra música, anos depois, Construção. Onde um operário, se não ele, muito parecido, cai de alto andar e interrompe o tráfego, num sábado, na contramão. Os motivos da queda não são óbvios, nem foram esclarecidos pelo autor, há quem diga que o dito cujo escorregou ao se escorar de mau jeito em umas das vigas de proteção. Devido a tantas vezes que fazia as mesmas coisas, seu automatismo faz com que ele perdesse a atenção. Outros afirmam que não, deram a isso uma explicação mais iconoclasta, inconformado com a atual situação em que se encontrava o país, e suas condições precárias de trabalho e salário, o dito cujo jogou-se para que assim percebessem, em seu último ato, que ninguém estava isento a culpa das atuais condições políticas e sociais do país. Argumentação de uns, conceitos doutros. Pode ter sido um Zé ou um Jão porque o certo é que Pedro pedreiro continuou vivo. Forte. Usando de sua força, o seu maior talento. Acordando cedo, não desistindo nunca de sua missão de mantenedor do lar, de fiel marido, realizando com distinção seu papel de exemplar brasileiro.
E será que no futuro (ou até agora) ainda irão lembrar do Pedro pedreiro, ou apenas da música que Chico fez para ele? Ah, ninguém ao fundo chegou a conhecer o Pedro pedreiro. Será que Chico conheceu algo do Pedro pedreiro? Foi na casa dele, bebeu de seu suco de manga, comeu do seu combinado feijão, arroz e galinha. Pedro nunca ouviu falar de Chico, então Chico não foi, mas bem que deveria ter ido, pois tudo deveria ser feito assim, em duas vias.
No futuro, isso é certo, Chico Buarque vai ser lembrado pela obra incontestável que construiu, anos após ano. Ortodoxo, cimentou tijolo em cima de tijolo, numa carreira com poucas falhas, com mínimos pontos negativos a serem apontados. A posteridade assim por ele será alcançada através de sua obra. Os vindouros que conhecerão suas músicas manterão Chico eterno. E assim, estará cumprida sua missão no terceiro planeta do sol para cá.
Pedro pedreiro quando sol se punha agradecia a Deus e a Nossa Senhora quando ele apontava na rua e estavam todos a espera dele. Eram dez filhinhos, muito pouco, quase nada, mas não tinham filhos melhores em nenhum lugar. Neste ponto do texto é inevitável a referência ao cancioneiro popular que Pedro pedreiro, talvez, sempre escutava nas folgas dos feriados, ou quando tinha tempo livre, ao ser dispensado nas várias crises econômicas nacionais. Pedro pedreiro era um popular. Um desses sem rostos que nunca foram à França, que nunca chegarão a ver a torre Eifel. “É alto que só”, diria. Vez por outra Pedro pedreiro ia ao Maracanã, e o mais engraçado é que assim, como Chico, ele também torcia para o Fluminense, mas nunca, nesses anos todos, chamaram o pedreiro para dar entrevista.
Mas deixando de lado a necessidade humana de atenção, e voltando aos dez filhinhos de Pedro pedreiro, é redundante dizer que eles cresceram, mas certamente com o tempo eles crescerem e por aí se espalharam. Um virou bispo que combatia os ídolos pagões e era idolatrado pelos fiéis, outro biscateiro que estava sempre trabalhando e sempre em casa. Outro vendedor de Viagra que tinha na cama uma mulher frígida. Outro bicho solto que com um revólver no coldre controlava daqui até o outro lado de lá perto de Centro.
Os restantes, viraram pedreiros. Meio que confirmando a tese daqueles: o clã dos Pedreiros não podia parar no Pedro pedreiro.
O pai passou aos que lhe acompanharam no batente os truques, os traquejos com a massa. Ensinou a sempre usar o capacete com a correia atarraxada, como guardar a marmita para a bóia não esfriar, como caminhar pelo andaime para de lá não se estrepar como fez um outro Zé ou Jão que outro dia foi ao chão. É vero que, assim como Chico, que em cada música gravada em estúdio barganhava sua imortalidade, na mente dos filhos, Pedro pedreiro se eternizava. Aquele, à larga escala, este à pequena. Contudo, o macro e o micro é a mesma coisa dependendo de quão perto ou quão longe se olha. Chico preferiu subir, como diz Fernando Pessoa, subir ao terraço e observar tudo de longe. Pedro, por sua vez, fez de um pedaço de lar sua missão. Aquele com o macro, este com o micro. E qualquer um que chegasse, com boa lupa, naquele núcleo familiar veria que através da comunicação oral Pedro pedreiro fomentou seus princípios, tijolo em cima de tijolo: seja um bom pai, proteja sua família e traga o pão suado para casa, mesmo que o diabo amasse depois que asse. Nem todos aprenderam, pois ainda está para nascer no mundo um ser que consiga, tudo. Porém sua missão nesse terceiro planeta estava mais que cumprida, sua semente perpetuada para os vindouros.
E se perguntam: Alguém sabe o paradeiro de Pedro Pedreiro? Virou concreto? Virou pele pra pandeiro? Voltando agora a indagar pelo paradeiro do Pedro pedreiro. Pelas contas, ele já deve ter aposentado, por sorte, morto, enterrado embaixo de uma laje de pedra. Entretanto tanta coisa pode ter acontecido com Pedro de 1965 para cá que podemos simplesmente inventar uma possibilidade para assim satisfazer a necessidade de uns que prezam por uma segura leitura linear com começo meio e fim (e temperada com uma boa lição de moral). Então daremos um fim ao Pedro pedreiro, um brasileiro: ele sucumbiu, era de noite, em um sonho de fevereiro. Fim.
Mas torna-se inconcebível que o Pedro pedreiro vá embora assim, no último trem pelo qual ele esperou a vida inteira – por inferno ou céu, sabe-se lá – e que só seja visitado no cemitério local nos dias de Finados. Correndo o risco de cair em falácias com o que foi falado assim, querendo caracterizar a Pedro o status de um imortal, que é o que fazem com os grandes poetas, escritores, compositores, é inevitável também ponderar outra possibilidade:
Pedro pedreiro nunca envelheceu, durante essas décadas, nunca faltou a um dia de batente. Está lá, no mesmo posto, na mesma obra, com o mesmo salário, come a mesma comida. Conjectura o mundo, ignora a ordem dos planetas, a ordem mundial e sua própria ordem. Pedro pedreiro faz a mesma rota diária de casa para o trabalho e vice-versa. Vai ver se um dia um de nós possamos nos esbarrar com ele. No meio do caminho sempre tem um Pedro pedreiro. Sempre tem um Pedro pedreiro. O tempo todo.
Aprovado
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