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segunda-feira, 26 de dezembro de 2011


HAI-KARAIS

*

gala rala hai-kai
nem um quarteto pinga
que fraqueza do carai

*

isto não é piada
ao contrário tragédia
não escrever mais nada

*

é isso não é issa
mas ao menos é melhor
que a mesmice da missa

*

que buceta de neve
aqui até no inverno
o meu caralho ferve

*

mais água que em janeiro
somente as xotas das putas
cheias o ano inteiro

*

tranquilo corre o xenxém
às suas margens crianças
se apressam em ter nenéns 

*

fértil solo a vagina
na cova cai um pingo
que enche o bucho das minas 

*

às quatro o galo canta
todo sujo de sonhos
o garoto se levanta

*

o cavalo policial
tá cagando e andando
pro vosso bem ou mal

*

a cadela no cio
doze cães ao redor
da puta que lhes pariu

*

que amor e compaixão  
cães se lambem os cus
em confraternização

*

quanta fez chinês faz
porém ninguém supera
japonês com seu hai-kai

sábado, 17 de dezembro de 2011

beleza

'texto de Gustavo Limeira', pra minha próxima postagem ;D

***********

Hoje um passarinho pousou na minha janela. Não que fosse um ato de destaque em relação a outros ou que fosse um passarinho de especial beleza, mas não consigo deixar de pensar que, se estivesses aqui, terias notado. Que um passarinho pousou a nossa janela. Isso porque tinhas-teves-tens uma coisa de notar beleza onde quase-já não há, onde não mais se vê – num olhar, numa janela, ni mim. É porque beleza só há-de fato quando nós a vemos. E é notável que a maioria das pessoas hoje não notaria um passarinho pousado a janela. Um passarinho pousou na minha janela, consigo te ver na mesa de jantar, entre uma garfada e outra, lembrando do fato e exclamando sorridente ‘um passarinho pousou a nossa janela hoje!’. Era de manhã. E ele não cantou. Pousou, espreguiçou as asas, ainda ensaiou encher o peito de ar como quem fosse cantar. Mas não cantou. Voou. Foi-se. Não consigo deixar de pensar que ainda te buscava nos recantos, nas beiradas, nas cortinas da janela. Um passarinho pousou em minha janela hoje e eu não sei mais porque ainda te escrevo.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Campo

Dilacera meu corpo
Campo de virgens sementes
Garganta de vãs palavras.

Dilacerado campo
Se mente as palavras
Vãs do meu corpo.

Um microconto para Machado

O Espelho

No vidro estilhaçado, agoniza o alferes. Com esmero, Jacobina lustra sua carabina nova. Sentia-se feliz, por possuir apenas uma alma.

domingo, 11 de dezembro de 2011

STAND UP FUCKING IT TUDO



As cortinas mofadas se abriram. Isso não é um conto. É só um amontoado de palavras, se alguma servir pra ti, meus pêsames. Só gostaria de acordar e sacar qual é a parada dessa galera moderna: instabilidade, baboseiras, línguas afiadas na rede, e bocas murchas na realidade. Sempre quis desequilibrar o jogo, chegar pra essa gente e dizer: “Todos temos planos, até levarmos um soco na boca.” Não tenho revolta com o mundo, apesar de ter sido fuzilado por um exército de garotos brancos e saudáveis quando pequeno. Apesar de papai ter quebrado dois dentes meus só porque não aprendi a andar de bicicleta.

“É só pedalar, filho de puta.”

E eu via o canino e incisivo voando.

Isso não me irrita.

Na verdade, eu só queria virar o tabuleiro. Cansei das merdas. Abobrinhas. Estou com vontade de cuspir verdades em suas bocas finas. Vocês falam demais, produzem de menos. Ter que ouvir uma poetisa lésbica falando merda de mim, sendo que escreve rimas do tipo “o amor é uma dor, o coração vacilou, minha calcinha se melou.” Porra mulher, vá se alfabetizar com o capeta. Aproveita e pega um bonde pra casa da sua mãe, aquela vaca parideira.

Eu não sou revoltado. Sério.

Vivo na rua. Um poeta das sacolas plásticas recheadas de restos humanos. Vivo no que você consome na mesa de jantar. Apesar de viver na escória, na ponta do cu da humanidade, afirmo: não tenho fúria. Tenho ímpeto. Nada me agride, mas tudo me atinge. Pessoas que desejam criticar, falar, pensar, sem sequer analisar os fatos me atinge. Ninguém é certeza, ninguém é 100% conservador ou 100% liberal.

Sou 100% conservador quando o assunto é bandido.
Sou 100% liberal quando o assunto é prostituição.
Sou 100% conservador quando o assunto é minha filha.
Sou 100% liberal quando o assunto é cigarro.

Não é simples? Mas não, as pessoas querem se afirmar como únicas. Vocês se entopem de chorume.

Amor e tumores, dessas substâncias que sou feito. Fui concebido pela vulva da Santa Mãe e expelido pelo reto do PAI CRISTÃO. Alimento-me de alfaces rasgadas, ossos de galinhas e jornais com peixes enrolados. Gorduras, caixas de sucos, revistas pornográficas com seus gozos. Gorduras do leitão de Natal, cascas de banana. Amo remexer o caos interior humanóide. Localizo massa abstrata de cabelos, baratas agonizando, cotonetes amarelados, latas de cerveja, palitos com pedaços de bife vermelho e marcas de batom. Janta de primeira.

Peguei os palitos e chupei: salgado. O gosto do alimento conseguiu nutrir o defunto que emergia em meus ossos. Outro dia de sobrevivência nesta cidade insone.

Sorrir para não transparecer loucura.
Sorrir para não transparecer a inquietude que sinto quando olho pra vocês.

Não sou furioso, sou teimoso.

Insisto em querer ajeitar uma coisa ou outra, explicar ou resumir a parada: tanto faz. Isso não precisa fazer sentido. Precisa atingir o alvo. Criadores egocêntricos desejam ser perfeitos, nunca erram e se afirmam como os melhores: seus egos fedem, seus corpos e mentes são mentiras maiores do que a brancura do Michael Jackson. Você, louca, pirada, trepadeira, pensa que um dia irá se achar? A saída para os seus problemas se encontra no topo de um prédio de vinte andares. A solução completa estará no térreo, quando a sua cabeça estiver enfiada no granito da sala de espera. E a roqueira metida à perfeita? Aquela que sabe tudo e tem certeza dos seus passos bambos, até se olhar no espelho e ver o quão degradante ela é. Vocês passaram no semestre da universidade? Nossa, que tal um suicídio coletivo agora?

Não tenho raiva, tenho manifestos.

Continuo catando meus lixos mentais e alimentícios, enquanto jorro palavras sem poesia ao vento.

O cuspe escorre na minha barba branca.

As cortinas se fecham. Fim do espetáculo. Se alguém se sentiu atingido ou incomodado ao ler, é porque foi pra você. Beijos e compartilhe essa porra na casa da sua avó mongolóide, diga que foi o Caio Lispector que escreveu.

Xoxo.

O TAMANHO DE UMA COR

Para Lenilde Freitas

não se pesa
um poeta
por palavras,
apenas

não se mede
um poema
por sentidos
(em cenas)

pois um poeta
é o peso
e a medida
do poema
(ine)exato.

a luz e o rigor
o tamanho
de uma cor.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

hermália

Hermália, datilógrafa e balconista, sabia muito bem o que queria da vida: sossego. Não se importava com homem, com dinheiro, com nada. Hermália queria apenas trabalhar e ficar em casa deitada de banho tomado com os pés na frente do ventilador para sentir o ar fresco tomar conta de seu corpo. Hermália era solitária desde cedo. Nasceu como nasce qualquer um. Saiu da mãe e herdou do pai os olhos, os cabelos e os ombros largos. Hermália sempre soube de si como mulher forte, batalhadora, órfã logo criança e comedora de fígado acebolado para não ficar anêmica. Ela vivia em paz. Mas acontece que a vida não dá descanso a ninguém, e Hermália viu-se, um dia, importunada por carta de gente distante. Alguém havia partido: uma tia, ou tio ou alguém que nunca havia conhecido. Logo, Hermália, datilógrafa e balconista, teve de fazer viagem por pedido em carta: compareça à leitura do testamento. E ela foi. Seguiu longa viagem para Araçagi. Nem sabia que cidade era aquela. Mas foi. E lá dando as caras Hermália conheceu a desgraça. Ela tinha família. Uma ruma de gente que nunca tinha visto. Gente que sabia de sua mãe, de seu pai, de como Hermália vivia e de sua mania de viver sempre distante. A datilógrafa surpreendeu-se com tal fato, pois fazia o máximo do impossível para não ser encontrada. Chegando ao cartório, local onde seria dito da herança de seu falecido tio, Hermália sentou-se de vestido e unha feita e esperou impaciente porque só queria ir embora e descansar antes de enfrentar trabalho no dia seguinte. A parentada, toda unida para saber quantos grãos cada um iria receber do falecido, falava cochichando que o tio era rico e isso e mais aquilo. Disseram até que o velho era sovina. Hermália só pensava que aquela gente era ruim, que nada tinha deles e que não queria contato com tanta gente feia que mal sabia respeitar o tempo de luto e já fazia partilha de bens. Chega então um advogado que passou a ler o que o velho havia escrito. E era tanto ó e á que o povo dizia que Hermália não via a hora de sair daquele lugar infestado por sua recém-conhecida família. E houve surpresa grande. O velho havia deixado o bem mais valioso para Hermália ― o que é bastante óbvio em dada narrativa. Porém, entretanto, todavia, o óbvio nem sempre é fidedigno. Hermália herdou do velho tio um belo e acobreado trombone antigo. 



 (Por Letícia Palmeira)

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Metáfora

Metáfora

Dessa vez,
Deixa que eu seja a metáfora dos teus sonhos
Enquanto adormece teus olhos num sono profundo,
Enquanto imobilizo o tempo,
No instante em que te guardo em meus braços,
Te respiro e te afago num beijo profundo.

garotas de Manaíra


ave, meninas
coisinhas vestidas
com tiras sem graça
em tetas rendidas
ao balanço
dos carros que passam
mal ditas sois e sempre às pressas
por outras mulheres, honestas
            porque a fruta bendita dos vossos traseiros
            refestela os maridos sem doces caseiros

ó santas meninas
            que abocanham sozinhas
            a aspereza da areia na praia
            a rudeza das mãos sob a saia
            o veneno de mil camisinhas
não sejais nunca mães
de meninos sem pai
            mas ficai sempre a postos
            e ofertai vossos gritos
            aos mistérios gozosos
            dos mundanos espíritos

salve, rainhas
            porque estou sozinho
            e vós sois coisinhas
que ficam e passam
o mundo inteirinho
se enche da bênção
das vossas perninhas
            e fica mais livre
            por causa do ardor
                        por causa do ardor

terça-feira, 15 de novembro de 2011

SAUDADE

saudades de ser o deus que não serei
singular-plural que quanto mais sinto
na esperança do império na sequência o quinto
menos me contento com a quinta sem rey

do vulgo saído a fidalgo distinto
qualquer tentação tento pra chegar-me a vez
de restaurar as ruínas do reino portuguez
em santo espírito tanto que eu minto

e vogo nas naus que nunca hei visto
depois de suas guerras por comércio e céu
e fico nas aldeias pra sempre sem distrito

anos mesmo antes de partirem os seus
me perdem além-mar mas meu o mundo em cristo
perdido eu aquém-terra o mito sobreviveu


PALHAÇO

que glória não teres pena de ninguém
acima do bem e contra os ricos
abaixo dos pobres a favor do riso
de quem seja sem seres de nada refém

também não me importo com os que têm juízo
fora da lei sei que nem os juízes o têm
também não me importo se abortam o neném
sei que os homens não valem um friso

o que te me interessa é o feio no belo
e o belo no feio é o riso alheio
ou o pranto contato que cure o não tê-los

eu estou contigo neste bamboleio
entre a morte sempre e a vida por um selo
de cenas alegres de um minuto e meio


AUTISTA

um mundo pra dentro que se quer não pode
ou se pode não quer felicidade fora
voltado pra si mil voltas em folha
no afeto que nem de mãe o amor o move

se feliz ninguém sabe nem tão pouco chora
por qualquer coisa ou muito por mode
de tudo ou nada que também o comove
ao riso por sorte do seu sem escolha

desejam curá-lo civilizadestrá-lo
no mínimo social como um qualquer
estimado animal na dor do seu calo

o pouco que diz não basta ao querer
dos outros dos quais abdica pro ralo
do eterno retorno ao insabido ser

terça-feira, 1 de novembro de 2011

EXORCISMO

Ainda tento o exorcismo.
A sombra da sua passagem ficou.
Leve rastro de marcas profundas
riscou o chão.

Ainda tento o exorcismo.
Ouço ruídos no andar de cima
Portas a bater,
Luzes a acender.

Não quero padre,
mandinga ou ritual
candomblé ou purificação.
Quero o próprio demônio
da sua dor habitando esta casa.

(Cyelle Carmem)

uns tercetos

Sei que minha postagem só vem depois de Cyelle, mas como ando com muitas coisas na cabeça resolvi adiantá-la logo por cá.

Abrazos!

* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *


I
e foi tudo tão rápido
que quando havíamos acabado
meu beijo ainda escorria da tua boca.

II
teus dedos em meus cachos
me assanham
melhor que o vento.

III
deito a cabeça no teu colo
e quero que o tempo
não passe tão logo.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

aranha

De Betomenezes


veio
ressu-
reta à
veia

imer-
(feito)
-gente

reta
qual'arqui-
teto

do chão
prendeu
a preia
à teia

catre
do végeto
fogo que
nem Frida
ateia

Inseti-
(inserto)
-cídio

sombria
candeia:

veneno
que leva
o lume
e o som-

breia

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Inquietude


"
Não tenho sonhos que me abrem os olhos
Tenho tormentas que me dormem pesadelos...
 
"
Mirtes Waleska Sulpino
*Todos os direitos reservados ao autor

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

falha trágica



Olívia está de volta. Chove forte no dia de sua chegada. Do aeroporto ao bairro onde mora, Olívia observa ruas de forma analítica como se quisesse aprender de novo uma lição antiga. Olívia mudou por dentro e por fora. Engraçado como ausências causam mudanças. Ela sorri displicente enquanto o carro passa veloz pelas praças e avenidas. Nada muda na cidade. Eu mudo, pensa Olívia. Feliz e abobalhada, louca para chegar a sua casa e ver suas coisas, seus objetos, seus móveis, seus pertences e, talvez, receba boas vindas. O corpo de Olívia vibra de excitação ao pensar que talvez receba visitas. Talvez alguém tenha preparado festa e terá vinho e amigos questionando novidades. Olívia contará tudo de sua viagem. Dirá da grande experiência e das pessoas que conheceu. Provavelmente irá inventar detalhes, colocar adjetivos em seus devidos lugares, soberba exibirá fotografias que ilustrem seus passeios e grande será o fingimento ao dizer que conheceu alguém que mudou sua vida para sempre. Olívia dirá que conheceu um mundo extraordinário enquanto esteve ausente. Mentir faz a gente viver mais contente. É como se a invenção acontecesse quando a despertamos de nossa imaginação. Eu crio um mundo diferente no qual eu possa andar indiscreta e ainda ser eloquente sem dar uma palavra. E agora chove e Olívia se encanta ao ver pessoas buscando abrigo sob portas de lojas, telhados, árvores. Todos buscam proteção. É impressionante como somos todos iguais. Pensativa, Olívia sequer percebe a água invadir as ruas deixando os carros mais lentos devido a um imenso engarrafamento. É tempo de pensar. Pensa tanto que acredita que terá mesmo festa e sabe que ao chegar ao seu prédio dará de cara com o porteiro ouvindo no rádio transmissão de jogo de futebol. Sabe que irá saudar o homem e dirá bom dia e encontrará crianças brincando no play e terá de cumprimentar senhores no elevador. A vida é contínua, curva sempre em linha reta e nunca sai da ordem rotineira de sua política. Olívia encolhe seu corpo no banco de trás porque sente ternura, afeto, vontade de viver infinito cada dia que virá. Ela tornou-se tão otimista que jura não mais entrar em combustão por seus pequenos problemas de tempos atrás. Sequer os relembra. Sabe apenas que sentiu necessidade de um tempo para si mesma e foi, de pé na estrada, buscar esquecimento. E agora está de volta. Olívia desce do carro em frente ao prédio onde mora. Malas estão sempre prontas para serem desfeitas. Ela observa a cena. Crianças brincam risonhas estridentes, o rádio do porteiro é impertinente, velhos capengam na porta do elevador e, do alto, no oitavo andar, seus amigos acenam da varanda para receber Olívia de portas abertas para sua vida. Mas algo corrompe o enunciado. Olívia entra no carro, pede ao motorista que a leve para longe daquela gente e some feito folha solta em água corrente. Ainda não estava pronta para ser a mesma mulher de ontem. E assim é a vida, confusa acrobata desinibida, muda itinerários, recria personagens e decide não mais remontar velhos cenários. 




 (Por Letícia Palmeira)

Rinite Crônica


Estavamos todos tranquilos, sentados lá na sala de espera do consultório, quando chegou um cara olhando pro teto, teve um pouco de dificuldade pra chegar até o balcão da recepcionista, conversou um pedaço com a moça, entregou os documentos e foi se sentar na minha frente. Passou mais um tempo olhando pro teto, praticamente todo mundo na sala fez o mesmo, curiosos pra ver se tinha algo por lá, num tinha nada de mais, tudo normal. Depois, chegou um momento que não aguentou mais, vai saber quanto tempo ele tava com o nariz apontado pra cima. Quando ele baixou a cabeça, foi aí que todos perceberam, o cara tava com uma rinite braba, muito líquido saia do nariz. E pensar que antes ele tava engolindo aquela secreção, eca! Vai ver ele tinha passado por vários consultórios e finalmente chegou no do melhor otorrinolaringologista da cidade. Enfim, era tanto líquido que saia, que as cavidades nasais do cara não davam conta, tava saindo até nas lágrimas dele, só um herói pra suportar tanto... tanta nojeira. O otorrino tinha que atendê-lo com urgência, tava na cara e no nariz, nem liguei quando a atendente informou que um paciente iria tomar a vez de todos. Só podia ser ele, o cara da rinite, era fato consumado. Preocupada com a sujeira na sala, a moça da limpeza providenciou um balde pra conter aquela secreção toda. Chegou a ser tragicômico ver o cara segurando um balde próximo ao rosto e o som daquele líquido tocando o fundo da balde, depois era o som de muco pingando em muco, o balde já tava cheio até a metade. Finalmente, o médico terminou com o paciente que tava atendendo e o rapaz foi chamado. Já era sem tempo, a turma da sala de espera não aguentava mais ver a cena, era muito asco e trágico, o cômico já tinha passado, algumas pessoas tavam enguiando. Pense num alívio. Só tem um detalhe, no momento em que a recepcionista chamou o cara, naquele instante, pude perceber que a boca dele tava fechada e, mesmo assim, deu pra escutar ele respondendo o chamado, dizendo que tava se encaminhando. Notei até os olhos dele mais esbugalhados, demonstrando um espanto momentâneo. Depois de uns dez minutos, o cara saiu aliviado, não precisava mais do balde, muito menos de olhar pra cima, saiu com um sorriso meio abestalhado no rosto. Dirigiu-se à recepção, assinou os papéis, pegou os documentos e foi embora. Instantes depois, abriu a porta e colocou apenas a cabeça pra dentro da sala, com a boca fechada e ostentando aquele sorriso no rosto, falou, boa tarde a todos e obrigado. A turma toda na sala de espera ficou espantada, o cara falou e não foi pela boca. Umas senhoras bem céticas já foram logo comentando, deve ser ventríloquo. Concordamos por concordar, porque a dúvida pairava na cabeça de todos no consultório.

Semanas depois, tratado de minha amigdalite, vi a propaganda na televisão, aquele mesmo cara, o da rinite, apareceu calado, depois olhou pra gente e começou a falar de boca fechada, só podia ser uma montagem, mas foi justo o que ele disse, não era montagem, ele não falava pela boca, mas, devido a uma rinite crônica, desenvolveu uma técnica pra falar pelo nariz e estaria hoje dando uma palestra com entradas a preço de custo em um dos auditórios da cidade, ensinando essa técnica inovadora, bastante útil para aqueles que, por exemplo, são ventríloquos ou gostam de falar enquanto estão mastigando. Isso seria algo excelente para os maleducados que falam com a boca cheia e poderia ser o momento em que teriamos vários ventríloquos novos pela cidade. Uma ideia de gênio. Dito e feito, meses depois, o cara da rinite tava rico, aparecia em tudo quanto era programa televisivo, ensinava umas técnicas simples ao vivo, como falar as vogais pela narina direita e algumas consoantes pela narina esquerda. Em uma das suas aparições, o cara da rinite falou, pelo nariz, obviamente, que estava desenvolvendo uma técnica para falar pelo nariz e pela boca ao mesmo tempo, seria possível fazer um jogral de uma pessoa só, incrível.

A moda pegou mesmo, pegou tanto que surgiram novas regras de etiqueta, uma delas é, não fale pelo nariz quando estiver gripado, corre-se o risco de ir catarro pra todo lado. Apesar de todos os pesares, relutei um pouco em participar de uma dessas palestras, não fui de início, não sou de seguir tendências, mas não tive pra onde correr, cá estou eu, falando pelo nariz e com um broche que ganhei, o qual contém os dizeres, “quer falar pelo nariz? pergunte-me como”.

Linkar praquela charge que fiz: "fale pelo nariz - pergunte-me como". sacou?

profanoração (thiago/outubro)


profanoração



pai nosso, ora bolas
onde estás?
no céu ou na boca
das velhas carolas
ou te entocas
em vis pedestais?

santificado, não sejas
poeta de nome maldito
pois sopraste no barro as cerejas
mas deixaste o licor interdito
            entretanto estas ervas que cheiras
            entorpecem teu mundo de absinto

não te metas no meu reino
nem me peças, por capricho
o sacrifício de um filho
            ou renúncia do recreio

que a terra seja o céu
e teus anjos
com trombetas
tocando anis punhetas
guarneçam o bordel

o pão nosso é nossa sina
cada qual procura o seu
e, por terem uns mais que outros,
uns aos outros assassinam
enquanto volves o rosto
nos largando neste breu

as ofensas que empenhamos
ao final compensaremos
com os rombos do teu banco
            só não queiras que durante
            a feitura desta dívida
            não caiamos aos montantes
nos prazeres da malícia

se assim fizeres acordo
cumpriremos nossa parte
sem alarde e com decoro

assim seja
bem aqui
                       e no além

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Microconto para Machado de Assis

 
para quando chegar minha vez.
 
 
A cartomante

Ela foi seca:

- Perdeste um filho aos dez meses de vida. Afogado. Ainda sentes muito, não?

Ele, desesperado, saiu sem pagar a consulta. Camilo acabara de completar nove meses e vinte e dois  dias.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

EGOCENTRISMO

se parece estranho esta enormidade
não o é pra mim só se for pra vós
esta maravilha de planetas e sóis
ao meu redor em rede com a divindade

que tudo há desde que meu pai me pôs
aqui dizendo assim do nada antes de
faça-se a luz e me fiz de vaidade
que eu já existia e o resto veio depois

mas o quando eu for me preocupa às vezes
o que há irá pro apenas a palavra
e além de mim nem vírus nem deuses

mas logo me acalmo que tudo é nada
átomos galáxias latinos e gauleses
se eu não estiver mais por esta estrada



XADREZ

o espaço limitado nos possibilita
infinitos e o tempo para ao redor
do tabuleiro eterno e retorna só
pra alçar o bispo branco à rainha aflita

espero em silêncio que o som do suor
esbarra no campo de força da prevista
um peão se interpõe e posto eu não insista
perco uma casa e ganho um ódio em dor

o campo de batalha me hipnotiza e o tempo
me toma as têmporas e avança o algoz
agora veloz em cavalos ao vento

 
um erro atrás do outro em minutos após
horas irretocáveis e acuado e só tombo
ao ruidoso revés da realidade atroz


LUPUS EGO

a forma perfeita nem na ideia está
é sempre um acerto depois de seis erros
na luta contra tudo antes do enterro
pra que este não exista mas ele nunca falhará

é mister mirar no cerne do bezerro
não se anda um dia sem ter que matar
arrancar seu couro pra carne meu manjar
e eu poder por os que restam em ferros

minha marca ígnea no mundo arrefecida
profunda ferida na mente de poucos
pra em cicatriz o touro não voltar à vida

que era pela morte por um medo louco
de si mesma que ora de olhos homicidas
e nas mãos as moedas da venda dá o troco

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

soneto a quatro mãos

Depois alguém me dá uma luz sobre se esse 'a quatro mãos' leva crase ou não? Thanks.


* * * * * * * *


A minha teimosia não é prosa,
é poesia!, é caixa de Pandora!
Carrega em si tal mote que a glosa
suspira, embriagada pela aurora

do meu versar; A musa me é senhora,
dona de mim. É rara, é perigosa,
sabe fazer-me mudo e sabe a hora
de me açoitar com pedra, pau & Rosa.

Mas se hoje me aventuro no relevo
incerto do meu texto é porque o pranto
é menor que o desejo; E, feliz, clamo:

Eu não sei escrever, mas eu escrevo.
Não sei como cantar. Contudo, canto.
Nada sei eu do amor, no entanto amo.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Espontaneidade Suada

Eu sou espontâneo, sou que nem cogumelo que dá meio da comida deixada assim, no lado de fora. Queijo do bom, seria? Não sei dizer se dou cólica, enveneno ou dou barato. O que sei é que a matéria onde broto não nasceu do nada, como música baiana em janeiro, sou como escola de samba em fevereiro – epifania programada desde ano passado. O que tento escrever apesar de espontâneo é como drible ligeiro de robinho, dá a impressão que, sei lá, saiu naquela hora, feito versos baratos com a riqueza inata, mas não. O broto de onde sai meu fungo é matéria alheia, vem do vento, vem da leitura, vem do olhar para o mundo, e principalmente pela sensibilidade de que não sou nada e meu verso é tudo... o processo é o pouco importa, a precessão sobre o tema, esta sim: o que vem a tona, se é queijo, veneno ou alucinógeno. Se vai fazer brotar palpitações ou simplesmente será como barata no ralo que dá aos montes. As tantas baratas se acham? Não sei. Só sei que as tantas acham. Quero ser queijo, mesmo  sem saber com que vinho irei combinar. Quero ser veneno, mas venhamos e convenhamos, não quero matar ninguém do coração, nem de desgosto. Talvez quero dar cólicas mesmo, dar desinteria, passar de onde outro qualquer desistiria. Quero que o meu fungo espontâneo seja falado mal, como a merda que cheira mal. Quero que a merda feda, pelo menos isto. A pior merda é aquela que você nem lembra que cagou. Não quero ser queijo de coalho pré-cozido. Queijo manteiga, quiçá. Posso até jogar sobre o meu fungo coalho firulas, dizer que sou robinho e fiz na hora. Mas cara, você não sabe o quanto ser espontâneo é difícil. É feito mágico que erra no meio do número pra depois agradar no final. É desmaiar na atuação do filme de modo que vejam que você desmaiou de verdade, ou pensem. Não quero ser uva que cai do pé ainda verde, só pra satisfazer o capricho do lobo (ou será se meu) Ufa! Escrevo como se camuflasse a porrada com peles de camurça, como se pisasse em pregos sem as pantufas que, nos treinos, aos poucos fui retirando.

domingo, 11 de setembro de 2011

resumo reunião santa rita

Resumo da Reunião ocorrida em Santa Rita

1- Ingresso de Letícia Palmeira e Romarta Ferreira;


2- Estatuto: membros que ainda não enviaram os dados, por favor, façam logo. precisamos vencer este estatuto;
 

3-Mensalidade: Por favor, que tiver condições, atualize suas mensalidades. Precisamos registar o estatuto e promover eventos que serão discutidos na próxima reunião;

NOVA CONTA PARA DEPÓSITO:
AG: 1619-5
CONTA POUPANÇA: 6435-1
VARIAÇÃO 01
CYELLE CARMEM





4- Estão abertas as sugestões para novos membros. Todavia, só haverá convite, depois de votação em reunião;
 

5- Sarau em CG: fica sugerido, ao joão matias, organizador do próximo sarau, q este, seja realizado na segunda semana de outubro;
 

6-por sugestão de denser, precisamos criar uma agenda anual de atividades do grupo. dentre as quais, realização de saraus, encontros literários e outros;
 

7- próxima reunião, bar do elvis, dia 24 de setembro, às 13 horas, véspera de viagem para bienal;


8- MAIS compromisso com o grupo. vamos postar, comentar e participar dos eventos, reuniões e discussões na net.

Bem, acho q é só isso. faltou algo?

A Revolução de 89 - parte final


Aqui, segue a terceira e última parte do 'A Revolução de 89'. Eu já havia postado, juntamente com as demais, mas aí está a versão revisada.

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Quanto ao destino da revolução que eu planejara, os fatos desviaram-se das diretrizes traçadas. Se o movimento tivera um idealizador, ele terminou encontrando um líder não planejado. Enquanto a diretora ocupava-se de retirar o general deposto do pátio e levá-lo para casa, os professores pareciam mais curiosos para ver o desenlace daquele evento inusitado, que ansiosos por restaurar qualquer tipo de disciplina. Já eu, à espera do momento mais oportuno de entrar em cena, não percebi que a cena contara com outro oportunista desde o primeiro minuto.
— Amigos! Amigos! – bradei. Ouçam! Ouçam! Não precisamos mais de um general inútil! Mas isso não significa que não precisamos mais de um líder! Precisamos de um líder útil!
O silêncio se fez. Prossegui:
— Se o general desceu, que suba o novo general!
— E quem seria esse novo general?! – perguntou Gabinho.
— O coronel! – gritou uma voz não identificada, seguindo-lhe o clamor de todo o pátio:
— Viva o coronel! Viva o coronel! Agora o general! Agora o general!
Foi então que minha sorte começou a mudar. Gabinho subiu os degraus da biblioteca e lançou os colegas contra mim:
— Mas o coronel não era o vice do general?!
— E o que isso tem a ver? – alguém indagou.
— Se o general não fez nada, o que fez o coronel?! Nada vezes nada! São todos iguais!
Ainda tentei salvar minha patente:
— Amigos! Amigos! Não ouçam o que ele diz! Não fiz nada porque ele, o general, não permitia!
— E o que você faria se ele permitisse? – alguém perguntou.
— Eu... bem...
— Ouviram?! Nada! – sentenciou Gabinho.
E uma onda de vaias banhou o ambiente. Era estonteante. E selou o insucesso dos meus planos de poder. Tão ingênuos os planos, quanto inútil aquele poder. Mesmo assim, o poder! Outro ovo atravessou as cabeças e acertou em cheio, daquela vez, o meu rosto. Naquele instante, Gabinho bradou:
— Viva a democracia!
— Viva! – vibrou a escola em peso.
— Abaixo as patentes!
— Abaixo as patentes! Abaixo as patentes! Abaixo as patentes! Abaixo as patentes! – e, repetindo o refrão revolucionário, aos berros, a multidão empurrou-me para fora do pátio enquanto erguia Gabinho no ar, aclamando-o como seu novo líder.
Fui socorrido por um dos professores, enquanto os demais tentavam conter o alunado, temerosos de que a revolução se transformasse em uma omelete. Levado para casa, só retornei à escola uma semana depois, para fazer as provas conclusivas do bimestre. Soube por Alan que, no dia seguinte ao tumulto, Gabinho organizara eleições para a nova liderança e os colegas o haviam elegido prefeito. Também se havia criado uma Câmara de Vereadores, com três membros, e o próprio Alan fora escolhido seu presidente. Enfim, os alunos estavam satisfeitos com a democracia, embora mal soubessem do que se tratava. O ex-general e eu voltamos a nos encontrar durante as provas. Não nos cumprimentamos; porém, no último dia de aula, ele me procurou.
— Jaquinho, vou sair da escola. No próximo semestre, vou estudar nas Damas. Meus pais conseguiram uma vaga e eu tenho que aproveitar a chance, pensando no vestibular. – era a mesma voz fleumática de sempre.
Um, dois, três segundos de silêncio e:
— Vamos lá. Deixe de bobagem. Não tenho ressentimentos. Afinal, aquela estória das patentes era uma piada sem sentido.
Sorri. Sorrimos.
— Agora, a piada é outra... – emendei.
— E nós estamos crescendo. Para tratar de coisas mais sérias. – ele completou.
Trocamos um aperto de mão, depois um abraço e nunca mais voltamos a nos ver.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

poema para possível publicação

Salmo para Isabel

a  fumaça do cigarro
veste de branco
a bailarina em seu vôo 
solitário....
meu teto como céu é teu palco.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Fale pelo nariz

Minha contribuição é este desenho. Um spoiler de um conto que fiz e brevemente pretendo lançar em formato de livro.

Laudelino

Senhora



Cava a sepultura e
Enterra meus últimos versos
Aqueles dedicados ao amor derradeiro,
Minha ruína, Minha quimera.

Versos declamados
Em lamentos de agonia
À ela, Senhora das últimas horas,
Vestida de mantas negras.

A assombrar-me noite e dia.

Vê quanta dor,
Quanto sofrimento,
Tantas lágrimas derramadas,
Em meu leito de morte?

Ó Criatura indesejada,
Envolve-me em tuas vestes
Arranca de vez esta minha dor
E mostra-me o Paraíso.

Quiçá, a Terra prometida.

Ó Senhora,
Que meus versos
Sejam tua Glória, teu deslumbramento.
Meu fascínio, em teus braços.

Minha última hora.

Mirtes Waleska Sulpino
*Todos os direitos reservados ao autor

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A Ficção Científica, os Robôs e a Modernidade

A Ficção Científica, os Robôs e a Modernidade

- primeira parte -

Há que de alguns meses me debrucei sobre a coletânea de contos organizada pelo bioquímico Isaac Asimov, junto de Patricia S. Warrick e Martin H. Greenberg, intitulada Histórias de Robôs. De bolso, editada pela LM & Pocket, figuras conhecidas e outras não da ficção científica, das quais Arthur C. Clark, Philip K. Dick e talvez o próprio Asimov sejam os mais notórios entre os outros integrantes do time, que ainda se compõe de: Gordon Dickson, Murray Leinster, Poul Anderson, John Brunner e Harry Harrison. Ao palmilhar as pouco mais de duzentas páginas do livro, o sentimento é de empolgação, frieza, indiferença, ora ou outra rútilos de exuberância e criatividade. Mas, o que pretendo mesmo, no Volume 3 da coleção que então se encerra, prende-se nas palavras de Isaac Asimov no auto-explicativo prefácio ensaístico “Os Robôs, Os Computadores e O Medo”.
Frente ao tema, forte no imaginário social, algumas notas do próprio Asimov (2007) acerca do caráter mecânico da sociedade para a qual escreve:
“Mais estranha ainda é a tenaz oposição a qualquer modificação no teclado das máquinas de escrever, embora o padrão universal de hoje em dia seja um disparate criado pelo inventor do instrumento por motivos banais. O mais avançado dos computadores atuais (inclusive o que estou usando neste instante) emprega esse teclado. Na realidade, ele diminui a velocidade datilográfica por causa da utilização desproporcional das duas mãos, principalmente ao favorecer a maior aplicação da canhota num mundo em que noventa por cento da população é mais hábil com a direita.”
“Por que essa atitude refratária a mudanças?”
Okay, Houston, we have a problem. Asimov repreende o leitor com considerações acerca do processo lento de reeducação. Para ele, as pessoas adultas “gastam infinidades de horas para se habituar com polegadas e milhas, com os vinte e oito dias de fevereiro, com letras que não se pronunciam, em night e debt por exemplo, com exercícios de datilografia e sabe Deus mais o quê”. Algo de novo implicaria uma volta aos primevos anos da descoberta do fogo, na qual a humanidade sorria mediante uma fagulha iniciada por um raio e o subseqüente espraiamento pelo vento. Seria talvez como uma volta à estaca zero, com o medo de este fogo se elevar e o incêndio, então sucedido, seja a revolta dos deuses da modernidade contra a humanidade pagã. Trocando o fogo por palavras: correr o risco tão conhecido de a modernidade resultar em possíveis fracassos.
É do “espantoso mundo da antecipação” que Asimov fala aos contemporâneos e leitores de um ou cinco séculos adiante. Medrosos ou não. Enfatizando riscos, questões de ordem moral e ideológicas, há no correr do breve ensaio iniciador de Histórias de Robôs –Volume 3 – um questionamento acerca do impacto do progresso da robótica. Para além do discurso tecnófilo (como o próprio autor se define), reside escondido um foco nas questões sociais de recepção da obra, de inserção dos autores em uma modernidade incipiente, mas cujas fagulhas de silício nos microchips, robôs e computadores já se mostra alçada pelo vento sombrio da floresta. A ciência nunca foi, afinal, tão ambiciosa e nem ainda tão assustadora:
“Mas o que importa, afinal, não é o “robô”, que consiste no sistema de alavancas e articulações que executa a função, e sim o computador, que controla essa função, e sobretudo o microchip, que reduziu de tal forma as dimensões do computador a ponto de já se ver nele o futuro rival do cérebro humano, em matéria de condensação e versatilidade.”
“Temos que admitir que, pelo menos como concepção, o medo não deixa de ser justificado. Não há nenhum limite teórico visível para a complexidade e “inteligência” do computador. Nem motivos para supor que, devido a deficiências intrínsecas, seja incapaz de igualar e até superar o nível de atividade do cérebro humano.”
Esta longa história que perfaz os medos e receios das sociedades ao progresso tecnológico leva Asimov ao insight de um possível paralelo: a revolução industrial e o movimento luddista (manifestantes contra as máquinas que estariam ocupando o lugar dos homens) comparados à então crescente revolução técnica e científica experimentada, sobretudo, pelos Estados Unidos com o pós-guerra e a ascensão de duas potências bipolares, blocos capitalistas e blocos soviéticos. A conclusão é: um complexo de Frankenstein nos assola. Complexo no qual a perspectiva do monstro revoltado contra o criador, clássico da ficção científica escrito pelas mãos de Mary Shelley, revelaria o “complexo do Frankenstein”, destacado pelo próprio Asimov como a síndrome da tecnofobia. Ou seja, esta sensação chinfrim de o cérebro humano, composto de ácido nucléico e proteínas em meio aquoso, resultante de três bilhões e meio de anos de evolução biológica (baseada, como você sabe, em efeitos de mutação, seleção natural e outras influências) contra uma composição de interruptores eletrônicos e correntes elétricas em meio metálico, com apenas 40 anos de aperfeiçoamento da criação humana. Eis o computador.
Naturezas diferentes: é o que se espera de duas inteligências distintas (uma biológica, outra eletrônica), com vigorosas diferenças de estrutura, históricos, desenvolvimentos e objetivos. Mas, se Deus nos legou essa bela capacidade de sentir, aos computadores o opróbrio seria não calcular tão bem. Se avaliados pela capacidade de resolver problemas aritméticos mais rapidamente, e se tal tipo de habilidade servir de critério para avaliar a inteligência, tais computadores podem ser aclamados por sua superioridade intrínseca. Mas, estando exatamente as virtudes humanas nas blandícias do erro, mesmo frente a situações em que a “visão do todo”, a sensibilidade da perspicácia, a originalidade da criatividade e, sobretudo, uma intuição sugestiva são úteis para, por exemplo, decidir a pena criminal de um cidadão, os computadores são terrivelmente ignorantes. Ou algozes arbitrários. O certo, conforme reflete Asimov, é que preparamos os computadores para corrigir deficiências as quais seres humanos como eu ou você não contemplam em suas próprias qualidades. Ou seja, não há computadores intuitivos e criativos unicamente porque não se exige isso. Em um mundo funcional, com códigos e padrões pré-estabelecidos, os problemas são divididos em etapas claras e lógicas cujo único intento é vê-las cumpridas. A simples constatação de que entre um “Yes” e um “No” não há um “Maybe” (Talvez), um humano “talvez”, sugere uma instrumentalização da razão/racionalidade. E se há, conduz a situações na qual o “Yes” e o “No” voltam límpidos e risonhos.
É uma dúvida cruel:
“Para que se esforçar em levar os computadores a desenvolver uma capacidade tosca de serem criativos quando já dispomos do cérebro humano, que faz isso tão bem? Seria tão sábio e prático proceder desse jeito quanto propor-se a treinar determinados seres humanos para executarem rápidas proezas matemáticas segundo os moldes de um computador”
E até certo ponto uma angústia, auspício ou lamentação:
“Por outro lado, duas inteligências diferentes, especializando-se em objetivos diversos, cada qual com sua utilidade, podem, num relacionamento simbiótico, aprender a colaborar com a lei natural do Universo de forma mais eficiente do que separadamente. Encarado dessa forma, o robô-computador não nos substituirá, mas servirá de amigo e aliado na marcha para um futuro glorioso”
Mas, quando a tecnofobia asimoviana, além do medo de que o progresso tecnológico tire o emprego de muita gente ainda traz consigo uma criatura semiperfeita criada pelo homem, fica posta a dúvida: qual o limite real da inteligência humana? Afinal, uma criatura com braços e pernas, pele artificial e um conjunto de características que podem muitas vezes confundi-lo com um ser humano: como uma criação perfeita assim poderia vir do homem? Sob que auspícios? Condição única de coexistência entre seres humanos e robôs, Asimov desenvolve em seu livro Eu, Robô (o qual foi adaptado para o cinema) as três leis da robótica (vista também como uma saída para os muitos enredos repetitivos na ficção científica de homens e robôs):
• 1ª lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
• 2ª lei: Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei.
• 3ª lei: Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e Segunda Leis.
Pseudo-humanos. A criação de um autômato, de um pseudo-ser humano, por um inventor também humano é, ainda, interpretada como paródia da criação da humanidade por Deus. Nas sociedades cristãs onde Deus é aceito como o único criador, é sacrílega qualquer tentativa de querer imitá-lo, ainda que na ficção científica ou na robótica inexistam intenções conscientes em tal sentido. Mas, materialmente é tudo diferente, ou seja, as coisas conforme vistas e experimentadas neste mundo concreto são tão diferentes quanto a ficção científica o é de uma simples fábula sobre coelhos e tartarugas:
“Na ficção científica, o robô é criado com a maior perfeição. Na vida real, porém , o que hoje chamamos de “robô industrial” não passa de um braço complexo e computadorizado, sem a menor semelhança com o ser humano. Fica muito mais fácil, portanto, visualizá-lo como máquina complexa do que como pseudo-pessoa, mais temido pelo efeito que produz sobre os empregos do que pela imitação sacrílega de nós mesmos.”
Cito, em título ilustrativo, dois contos presentes na coletânea de Histórias de Robôs. Um deles, Uma Lógica Chamada Joe, escrito por Murray Leinster em 1946, faz alusão à utilidade doméstica futuramente atribuída aos computadores. A “Lógica” de Leinster é um box metálico, no qual todo o conhecimento do mundo, da vida e de tudo é respondido por esta máquina que, de uma simples utilidade criada, Joe (nome atribuído ao primevo computador) reproduz-se e instala um caos social com respostas para perguntas como “qual a senha do banco tal” ou “como posso me tornar presidente”. Joe é um Google mecânico para o qual respostas têm de ser claras e precisas. Isso em 1946. Joe é temido e, por fim, proibido e trancafiado pelo próprio dono, o qual não sabe quando poderá utilizá-lo novamente, mas cogita. E assim se encerra o conto. Cerca de 40 anos depois surge os sites de busca: Google, Yahoo etc.
Outro, para acirrar ainda mais a influência de computadores e robôs sobre o que se chama de modernidade, é o conto Prova, da autoria do próprio Isaac Asimov no ano de 1946. Nele, há a insinuação de que um robô poderia ser capaz de governar um estado normal, com seres humanos normais, guiado pelas três leis da robótica (descritas acima) e cujos padrões éticos seriam bem mais sólidos do que os observados na maioria dos políticos convencionais. O conto narra uma história vivenciada por funcionários do governo de um Estado influente, pelo robô cuja similaridade com seres humanos é tamanha que lhe é permitido concorrer legalmente às eleições do governo (mas, imprecisa o suficiente para despertar a reação dos adversários) e, por último, a psicóloga de robôs, encarregada de provar se o candidato em questão é ou não um robô. Bem entendido: neste Estado, não se permite robôs candidatos a cargos públicos. Para não estragar o prazer de quem ainda irá se debruçar sobre o texto, não narro como tudo acontece, mas fica claro no decorrer do conto que o robô candidato às eleições é dado a uma sucessão de provas: “ele é ou não um robô?”. Ele, Robô, busca a todo tempo respeitar as leis asimovianas e ainda assim consegue, a todo custo, passar por um teste maior e “provar” ser um não-robô, mas a partir de uma atitude típica humana, simulada por um segundo robô, de modo que não se desrespeitassem quaisquer das tais leis da robótica (um código de ética indevassável). Curioso? Mais ainda é a reação da sociedade ficcional a uma criatura perfeita, incapaz de qualquer falha ética ou deficiência moral.
Para a complexidade de um ensaio acerca da ficção científica e dos indícios sugestivos da modernidade nas relações entre ficção, sociedade e literatura demonstrarei, em uma segunda parte deste ensaio, quais as questões acerca da racionalidade instrumental, da chamada dialética do esclarecimento e do conceito de modernidade como um risco constante, em que o fogo, mesmo sendo útil, traz por consequência o incêncio; a agricultura, prejuízos para o solo; o avião, a possibilidade do bombardeio aéreo; a tecnologia, a invenção de bombas de hidrogênio; além de computadores que operam máquinas para matar pessoas. Na ficção, tudo se expressa em um contexto específico da literatura de alguns autores. Mais especificamente, na fase em que o progresso tecnológico punha dúvidas sobre a natureza de nossas ações e criações, expressão de uma realidade palpável de artistas preocupados e engajados no próprio tempo.

Referência bibliográfica:
Asimov, Isaac. In Histórias de Robôs 3 v. /ET. Al./ ; tradução de Milton Persson. Os robôs, os computadores e o medo – Porto Alegre: L&PM, 2007.

OBS: Caso o texto seja aceito, encaminharei-o para o e-mail de Bruno R. R. Santos com todas as correções de itálico nas citações, ok?

João Matias.