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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

hermália

Hermália, datilógrafa e balconista, sabia muito bem o que queria da vida: sossego. Não se importava com homem, com dinheiro, com nada. Hermália queria apenas trabalhar e ficar em casa deitada de banho tomado com os pés na frente do ventilador para sentir o ar fresco tomar conta de seu corpo. Hermália era solitária desde cedo. Nasceu como nasce qualquer um. Saiu da mãe e herdou do pai os olhos, os cabelos e os ombros largos. Hermália sempre soube de si como mulher forte, batalhadora, órfã logo criança e comedora de fígado acebolado para não ficar anêmica. Ela vivia em paz. Mas acontece que a vida não dá descanso a ninguém, e Hermália viu-se, um dia, importunada por carta de gente distante. Alguém havia partido: uma tia, ou tio ou alguém que nunca havia conhecido. Logo, Hermália, datilógrafa e balconista, teve de fazer viagem por pedido em carta: compareça à leitura do testamento. E ela foi. Seguiu longa viagem para Araçagi. Nem sabia que cidade era aquela. Mas foi. E lá dando as caras Hermália conheceu a desgraça. Ela tinha família. Uma ruma de gente que nunca tinha visto. Gente que sabia de sua mãe, de seu pai, de como Hermália vivia e de sua mania de viver sempre distante. A datilógrafa surpreendeu-se com tal fato, pois fazia o máximo do impossível para não ser encontrada. Chegando ao cartório, local onde seria dito da herança de seu falecido tio, Hermália sentou-se de vestido e unha feita e esperou impaciente porque só queria ir embora e descansar antes de enfrentar trabalho no dia seguinte. A parentada, toda unida para saber quantos grãos cada um iria receber do falecido, falava cochichando que o tio era rico e isso e mais aquilo. Disseram até que o velho era sovina. Hermália só pensava que aquela gente era ruim, que nada tinha deles e que não queria contato com tanta gente feia que mal sabia respeitar o tempo de luto e já fazia partilha de bens. Chega então um advogado que passou a ler o que o velho havia escrito. E era tanto ó e á que o povo dizia que Hermália não via a hora de sair daquele lugar infestado por sua recém-conhecida família. E houve surpresa grande. O velho havia deixado o bem mais valioso para Hermália ― o que é bastante óbvio em dada narrativa. Porém, entretanto, todavia, o óbvio nem sempre é fidedigno. Hermália herdou do velho tio um belo e acobreado trombone antigo. 



 (Por Letícia Palmeira)

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Metáfora

Metáfora

Dessa vez,
Deixa que eu seja a metáfora dos teus sonhos
Enquanto adormece teus olhos num sono profundo,
Enquanto imobilizo o tempo,
No instante em que te guardo em meus braços,
Te respiro e te afago num beijo profundo.

garotas de Manaíra


ave, meninas
coisinhas vestidas
com tiras sem graça
em tetas rendidas
ao balanço
dos carros que passam
mal ditas sois e sempre às pressas
por outras mulheres, honestas
            porque a fruta bendita dos vossos traseiros
            refestela os maridos sem doces caseiros

ó santas meninas
            que abocanham sozinhas
            a aspereza da areia na praia
            a rudeza das mãos sob a saia
            o veneno de mil camisinhas
não sejais nunca mães
de meninos sem pai
            mas ficai sempre a postos
            e ofertai vossos gritos
            aos mistérios gozosos
            dos mundanos espíritos

salve, rainhas
            porque estou sozinho
            e vós sois coisinhas
que ficam e passam
o mundo inteirinho
se enche da bênção
das vossas perninhas
            e fica mais livre
            por causa do ardor
                        por causa do ardor

terça-feira, 15 de novembro de 2011

SAUDADE

saudades de ser o deus que não serei
singular-plural que quanto mais sinto
na esperança do império na sequência o quinto
menos me contento com a quinta sem rey

do vulgo saído a fidalgo distinto
qualquer tentação tento pra chegar-me a vez
de restaurar as ruínas do reino portuguez
em santo espírito tanto que eu minto

e vogo nas naus que nunca hei visto
depois de suas guerras por comércio e céu
e fico nas aldeias pra sempre sem distrito

anos mesmo antes de partirem os seus
me perdem além-mar mas meu o mundo em cristo
perdido eu aquém-terra o mito sobreviveu


PALHAÇO

que glória não teres pena de ninguém
acima do bem e contra os ricos
abaixo dos pobres a favor do riso
de quem seja sem seres de nada refém

também não me importo com os que têm juízo
fora da lei sei que nem os juízes o têm
também não me importo se abortam o neném
sei que os homens não valem um friso

o que te me interessa é o feio no belo
e o belo no feio é o riso alheio
ou o pranto contato que cure o não tê-los

eu estou contigo neste bamboleio
entre a morte sempre e a vida por um selo
de cenas alegres de um minuto e meio


AUTISTA

um mundo pra dentro que se quer não pode
ou se pode não quer felicidade fora
voltado pra si mil voltas em folha
no afeto que nem de mãe o amor o move

se feliz ninguém sabe nem tão pouco chora
por qualquer coisa ou muito por mode
de tudo ou nada que também o comove
ao riso por sorte do seu sem escolha

desejam curá-lo civilizadestrá-lo
no mínimo social como um qualquer
estimado animal na dor do seu calo

o pouco que diz não basta ao querer
dos outros dos quais abdica pro ralo
do eterno retorno ao insabido ser

terça-feira, 1 de novembro de 2011

EXORCISMO

Ainda tento o exorcismo.
A sombra da sua passagem ficou.
Leve rastro de marcas profundas
riscou o chão.

Ainda tento o exorcismo.
Ouço ruídos no andar de cima
Portas a bater,
Luzes a acender.

Não quero padre,
mandinga ou ritual
candomblé ou purificação.
Quero o próprio demônio
da sua dor habitando esta casa.

(Cyelle Carmem)

uns tercetos

Sei que minha postagem só vem depois de Cyelle, mas como ando com muitas coisas na cabeça resolvi adiantá-la logo por cá.

Abrazos!

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I
e foi tudo tão rápido
que quando havíamos acabado
meu beijo ainda escorria da tua boca.

II
teus dedos em meus cachos
me assanham
melhor que o vento.

III
deito a cabeça no teu colo
e quero que o tempo
não passe tão logo.