Discuti esses dias com duas figurinhas carimbadas que, no auge de sua sapiência automonoteísta, simplesmente adotaram dois caminhos típicos de quem faz fotossíntese com a luz da própria arrogância. A primeira pessoa foi um poeta que escreve versos ruins e, quando criticado com educação, devolve pondo em dúvida os conhecimentos ou a idoneidade de quem fez a crítica. A segunda pessoa fez justamente uma crítica, tomando um ótimo poema de um conhecido e simplesmente dizendo que esse poema era uma "bosta", para não apontar nomes piores, e ainda afirmando não ser poesia. Pois bem, ambos, um e outro, não sabem o que é poesia, fato! Academicamente falando, um bom poema apresenta quatro características essenciais que devem ser preservadas: estranheza, particularização, densidade semântica e concisão. Todas trabalham em conjunto. Dificilmente acham-se poemas realmente líricos em que, na presença de um, os outros três não estejam presentes (não que seja impossível a ausência de um deles, mas é muitíssimo raro encontrar a ausência de um dos quatro elementos em boa poesia). Obviamente, aos leitores atentos, percebe-se minha predileção pelo Formalismo Russo, mas não vem ao caso. Expliquemos o que é cada um desses elementos. Leiam a seguinte estrofe:
"Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;"
Clássica estrofe camoniana
Em primeiro lugar, a Estranheza ou Desautomatização da Linguagem. A língua falada e escrita, na maior parte das vezes, se apresenta em torno número mais ou menos previsível de sentenças possíveis, determinadas pelos padrões (ou regras) e pelas variantes que lhe são comuns. Ela é imediata aos eventos, ou seja, estrutura-se sobre um formato mais ou menos comum sobre o qual não precisamos pensar muito a respeito. Significa que, no nosso cotidiano, a língua se manifesta de forma automática. Como desautomatização entendemos capacidade que o gênero lírico possui de romper com esse automatismo da língua, tanto que se eu pronunciar a oração: "o fogo me queimou e está ardendo ainda", estarei usando uma sentença automática, já previsível nos padrões e nas múltiplas variantes de uma língua. Se eu pronunciar a estrofe camoniana acima, usarei as mesmas regras da língua, mas criando uma sentença que não estava no campo da previsibilidade, afinal, não falamos intencionalmente, o tempo todo, rimando, ritmando e modulando, e nem mesmo com os cruzamentos semânticos que ocorrem nesse poema. Em resumo: a poesia gera estranheza no receptor da mensagem nos níveis sintáticos, semânticos e fonológicos.
Em segundo lugar, a particularização. É comum à linguagem a generalização e a instanciação. Quando nos referimos aos objetos, ou generalizamos (TODO homem é mortal) ou instanciamos (ALGUNS homens são velhos), mas na liguagem lírica, tendemos a singularizar (O homem é mortal e velho), nos concentramos não em coisas gerais ou instanciais, mas em elementos definidos. Pode parecer estranho falar isso em português, que possui artigos definidos, mas só singularizamos quando nos referimos a alguém ou a algo específicos. Em lógica dos termos e dos predicados, por exemplo, não é nada fácil lidar com uma proposição como "Paulo viajou ontem", pois tratar com determinações em lógica (e em linguagem) gera múltiplos problemas como a limitação sentencial da idéia que se quer exprimir. Mas na poesia "Paulo" é um elemento de construção central (personagem). No caso da estrofe camoniana, o "Amor" torna-se singularizado, separa-se da definição geral do que seja o amor, e da definição instancial. O amor torna-se particular.
A densidade semântica impera na presença de muitas ideias ou níveis linguísticos na poesia. A língua, ou a linguagem como um todo, apresenta sempre um juízo de valor. Significa que, quando criamos frases, proposições, orações, sentenças, textos ou discursos, estamos na verdade julgando, medindo e atribuindo um valor sobre alguma coisa. Esse é outro ponto de ruptura em relação à linguagem lírica, pois esta apresenta-se em um meio termo entre o juízo de valor e a ausência total de valoração de significados. Significa que todo poema é um conjunto de sentenças solipsistas e autocentradas, com significado em si mesmas. A esse deslocamento dos valores, damos o nome de Quase-Juízos. Esses quase-juízos é que garatem a densidade da poesia (ou, na linguagem de Wayne Booth, geram uma resposta do leitor apropriada ao nível linguístico que se evidencia à sua classe de indivíduos). Muita coisa é dita em um haicai, ou em um poema-pílula. Outro nome que podemos dar à densidade semântica é polissemia. A linguagem comum possui um limite de interpretações possíveis (valores dados pelo leitor) de suas sentenças, limites esses que são determinados pelo comum acordo dos membros de uma comunidade linguística. O lirismo, porém, não só exige a polissemia como a toma como objetivo último. Portanto, levar poemas e textos literários ao pé da letra é um risco tremendo quando falamos de textos religiosos, uma vez que estes, por serem em essência poéticos, tendem a alcançar alto grau polissêmico. Que dizer então de um poema político, engajado, devocional, metafísico ou sentimentalista? A estrofe é densa nesse sentido: o Amor oscila entre um juízo claro e uma ausência de juízo.
Mas, sem a concisão, a densidade semântica não seria nada. A concisão é a propriedade do texto (e a habilidade do poeta) de condensar muitas ideias em uma quantidade mínima de texto. Poetas como Sérgio de Castro Pinto, Mário Quintana e Carlos Drummond de Andrade tornaram-se mestres no processo, assim como escritores como Horácio Quiroga, Fabrício Carpinejar e Luís Fernando Veríssimo. Apesar de não ser recente, o recurso da concisão é considerado hoje a menina dos olhos da literatura. O poema acima é conciso: em uma estrofe, entendemos claramente a indefinição do amor da qual o poeta supostamente sofre.
Por fim, para o poeta que arrogou-se o direito de não ser criticado, vai um alerta: a poesia, quando natural, é treino e frequência de produção. Quando planejada, exige conhecimento teórico e lapidação. Tanto um quanto outro são processos válidos, mas exigem dos poetas um cuidado com as palavras ou, como diz Bráulio Tavares, "domínio da forma e compreensão do espírito". Para o que arrogou que uma poesia explícita não é poesia, vai outra dica: para ser poesia, não precisa fazer chorar, nem precisa ser o ápice da flecha atingindo a subjetividade. Basta ser realmente poesia de acordo com os critérios acima. Se os recursos são bem ou mal utilizados, é com o poeta.
(Este texto encontra-se também publicado no site do jornalista e poeta Linaldo Guedes Aquino)