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terça-feira, 2 de outubro de 2012

Banal - Félix Maranganha


(Cerveja. Gole. Cerveja. Mesa.)
– ¡Cara! Preciso terminar meu curso e voltar pro Sertão. Quero criar gado.
(Cerveja. Gole. Cerveja.)
– ¡Que massa! ¿Quer criar gado? ¡Que massa!
(Cerveja. Gole. Cerveja. Bunda passando. Pescoço olhando.)
– Mas não sei como dizer isso pro meu pai, ¿saca? ¿E se ele perguntar por que vou pro interior lidar com terra?
– ¡Ôxe! – respondi – diga que vai pro interior lidar com terra.
(Cervejas. Goles. Risos. Bundas. Gente.)

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Conto pro blog


Árvore Tétrica

Tive de ir na feira, fazer a feira, comprar certas frutas, legumes e verduras. No meio de toda aquela feira, tinha um rapaz com um boné que escondia o rosto, escorado em uma das quitandas com um ar misterioso. Passei perto dele e ele me chamou, perguntando se eu não estaria interessado em algo diferente. Pensei logo em drogas, mas não era isso, me mostrou três sementes verdes, afirmando que eram mágicas. Achei uma baboseira sem tamanho, ainda mais pelo preço que oferecia pela bagatela de três carocinhos pequenos e verdes, cinquenta reais. O rapaz do boné disse que eu poderia pensar, eu não iria me arrepender, iria me vislumbrar com o que brotaria daquelas sementes. Continuei a fazer minhas compras, mas com a ideia das sementes incrustadas na minha cabeça, criando raízes. Minha curiosidade brotou e resolvi despender os cinquenta reais naquela planta misteriosa. Fui lá no rapaz do boné, apresentei a nota de cinquenta e pedi as semente, ele as me deu. Me chamou pra perto e falou baixinho no meu ouvido o modo de plantio. Teria de plantar as três ao mesmo tempo em um vaso marrom, regá-las com cuidado durante três dias, no quarto dia, uma das sementes iria brotar e eu ficaria estarrecido com o que veria. Conferi as sementes na minha mão, quando olhei de volta, o rapaz do boné não estava mais no seu canto, havia sumido. Voltei pra casa pensando nas minhas sementes mágicas, três sementes, seria como João e o pé de feijão. Apesar da cor verde, não se assemelhavam a feijão, teria o mesmo tamanho, mas não. Será que no quarto dia acordaria com o telhado de casa arrancado, o vaso destruido e uma grande árvore, ponte que me levaria aos céus? Iria escalar toda aquela árvore, feito João, encontraria um castelo fincado em uma núvem, um castelo de dimensões gigantescas, onde moraria um gigante, enfrentaria o gigante, roubaria seu ganso, ou pato, não lembro, que põe ovos de ouro e fugiria, descendo o grande pé de feijão. Entretanto, isso é outra história, uma fantasia já contada. Talvez que ao invés de uma grande árvore, tivesse uma grande raiz, que cavaria terra adentro, até o centro do planeta, levando-me a uma espécia de inferno, encontraria um guia, Virgílio, que me guiaria pelos nove cantos do inferno real. Entretanto, nos encaminhamos pra outra história já contada.

Plantei as sementes num vaso marrom, segui o procedimento metodicamente, reguei todos os dias, sem falta, com paciência, esperando pelo quarto dia. Um pouco ansioso pra ver o que brotaria. Finalmente, durmo do terceiro pro quarto dia. Sonhei me acordando pela manhã, andava pela casa que parecia um pouco diferente, impressão de que tudo era maior, o corredor se alongava, tardando meu encontro com a planta vislumbrante. No momento que a encontrei, não a vi, acordei. Não era mais imaginário, estava na realidade, me dirigi pro local e lá visualisei a planta. De fato, foi vislumbrante, uma planta que nunca havia visto. Uma árvore diferente, não destruiu telhado, tinha cerca de um metro e meio de altura, crescimento instantâneo em uma noite, e o vaso não quebrou estava intacto, nada de descer nas profundezas do centro da terra. Sua cor era vermelha, sem frutos, seu formato de linhas retas, fazendo curvas de noventa graus. Um único tronco, conexo, sem ramificações. O formato me lembrou aquele jogo de celular da cobrinha, não o jogo moderno, sim o clássico, de tempos atrás, quando não se tinha cores nos aparelhos, apenas o tom monocromático. Poderia dizer também que remetia ao tetris. Foi assim que chamei-a: árvore tétrica. Dei um giro de trezentos e sessenta graus ao redor da árvore, para observar melhor, por incrível que pareça, independente do ângulo que olhasse, seu formato era o mesmo, uma ilusão de ótica real, uma árvore bidimensional.

Aproximei-me daquela flora diferente, toquei-a e, pra meu espanto, virou pó, um pó avermelhado, espalhou-se pelo chão da sala. Não fotografei, não filmei e virou pó. Quem iria acreditar na minha história da árvore tétrica sem nenhuma prova cabal? Uma grande decepção, depois de tanto tempo esperando, tudo virou pó. Além do dinheiro disperdiçado. No meu desespero, cavei em busca das sementes, estavam intactas, conforme havia depositado no vaso. Respirei fundo, angariando paciência e repeti o procedimento para que brotasse mais uma vez. Nada feito, no quarto dia, nada de árvore tétrica. Tentei mais uma vez, mas nada de novo. Desisti. Decidi passar as sementes pra frente, iria recuperar meu dinheiro, meus cinquenta reais. Peguei um boné qualquer e escondi o rosto, fui pra feira, fiquei no mesmo ponto onde aquele rapaz do boné estava. Observava as pessoas, analisando quem poderia se interessar por uma árvore tétrica. Encontrei minha vítima, uma mulher com ar de curiosa. Dei o bote, repeti a mesma ladainha que aquele rapaz do boné havia me dito. Ela, a princípio, pensou que fosse uma cantada, depois, quando viu as sementes na minha mão, viu que era sério, e resolveu comprar as sementes, me deu o dinheiro e eu lhe disse o procedimento de plantio e as entreguei na mão dela. Ao perceber que ela olhava pras sementes, foi a deixa que precisei, sumi.


domingo, 19 de agosto de 2012

Uma dica de humildade para os poetas


Discuti esses dias com duas figurinhas carimbadas que, no auge de sua sapiência automonoteísta, simplesmente adotaram dois caminhos típicos de quem faz fotossíntese com a luz da própria arrogância. A primeira pessoa foi um poeta que escreve versos ruins e, quando criticado com educação, devolve pondo em dúvida os conhecimentos ou a idoneidade de quem fez a crítica. A segunda pessoa fez justamente uma crítica, tomando um ótimo poema de um conhecido e simplesmente dizendo que esse poema era uma "bosta", para não apontar nomes piores, e ainda afirmando não ser poesia. Pois bem, ambos, um e outro, não sabem o que é poesia, fato! Academicamente falando, um bom poema apresenta quatro características essenciais que devem ser preservadas: estranheza, particularização, densidade semântica e concisão. Todas trabalham em conjunto. Dificilmente acham-se poemas realmente líricos em que, na presença de um, os outros três não estejam presentes (não que seja impossível a ausência de um deles, mas é muitíssimo raro encontrar a ausência de um dos quatro elementos em boa poesia). Obviamente, aos leitores atentos, percebe-se minha predileção pelo Formalismo Russo, mas não vem ao caso. Expliquemos o que é cada um desses elementos. Leiam a seguinte estrofe:

"Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;"
Clássica estrofe camoniana

Em primeiro lugar, a Estranheza ou Desautomatização da Linguagem. A língua falada e escrita, na maior parte das vezes, se apresenta em torno número mais ou menos previsível de sentenças possíveis, determinadas pelos padrões (ou regras) e pelas variantes que lhe são comuns. Ela é imediata aos eventos, ou seja, estrutura-se sobre um formato mais ou menos comum sobre o qual não precisamos pensar muito a respeito. Significa que, no nosso cotidiano, a língua se manifesta de forma automática. Como desautomatização entendemos capacidade que o gênero lírico possui de romper com esse automatismo da língua, tanto que se eu pronunciar a oração: "o fogo me queimou e está ardendo ainda", estarei usando uma sentença automática, já previsível nos padrões e nas múltiplas variantes de uma língua. Se eu pronunciar a estrofe camoniana acima, usarei as mesmas regras da língua, mas criando uma sentença que não estava no campo da previsibilidade, afinal, não falamos intencionalmente, o tempo todo, rimando, ritmando e modulando, e nem mesmo com os cruzamentos semânticos que ocorrem nesse poema. Em resumo: a poesia gera estranheza no receptor da mensagem nos níveis sintáticos, semânticos e fonológicos.

Em segundo lugar, a particularização. É comum à linguagem a generalização e a instanciação. Quando nos referimos aos objetos, ou generalizamos (TODO homem é mortal) ou instanciamos (ALGUNS homens são velhos), mas na liguagem lírica, tendemos a singularizar (O homem é mortal e velho), nos concentramos não em coisas gerais ou instanciais, mas em elementos definidos. Pode parecer estranho falar isso em português, que possui artigos definidos, mas só singularizamos quando nos referimos a alguém ou a algo específicos. Em lógica dos termos e dos predicados, por exemplo, não é nada fácil lidar com uma proposição como "Paulo viajou ontem", pois tratar com determinações em lógica (e em linguagem) gera múltiplos problemas como a limitação sentencial da idéia que se quer exprimir. Mas na poesia "Paulo" é um elemento de construção central (personagem). No caso da estrofe camoniana, o "Amor" torna-se singularizado, separa-se da definição geral do que seja o amor, e da definição instancial. O amor torna-se particular.

A densidade semântica impera na presença de muitas ideias ou níveis linguísticos na poesia. A língua, ou a linguagem como um todo, apresenta sempre um juízo de valor. Significa que, quando criamos frases, proposições, orações, sentenças, textos ou discursos, estamos na verdade julgando, medindo e atribuindo um valor sobre alguma coisa. Esse é outro ponto de ruptura em relação à linguagem lírica, pois esta apresenta-se em um meio termo entre o juízo de valor e a ausência total de valoração de significados. Significa que todo poema é um conjunto de sentenças solipsistas e autocentradas, com significado em si mesmas. A esse deslocamento dos valores, damos o nome de Quase-Juízos. Esses quase-juízos é que garatem a densidade da poesia (ou, na linguagem de Wayne Booth, geram uma resposta do leitor apropriada ao nível linguístico que se evidencia à sua classe de indivíduos). Muita coisa é dita em um haicai, ou em um poema-pílula. Outro nome que podemos dar à densidade semântica é polissemia. A linguagem comum possui um limite de interpretações possíveis (valores dados pelo leitor) de suas sentenças, limites esses que são determinados pelo comum acordo dos membros de uma comunidade linguística. O lirismo, porém, não só exige a polissemia como a toma como objetivo último. Portanto, levar poemas e textos literários ao pé da letra é um risco tremendo quando falamos de textos religiosos, uma vez que estes, por serem em essência poéticos, tendem a alcançar alto grau polissêmico. Que dizer então de um poema político, engajado, devocional, metafísico ou sentimentalista? A estrofe é densa nesse sentido: o Amor oscila entre um juízo claro e uma ausência de juízo.

Mas, sem a concisão, a densidade semântica não seria nada. A concisão é a propriedade do texto (e a habilidade do poeta) de condensar muitas ideias em uma quantidade mínima de texto. Poetas como Sérgio de Castro Pinto, Mário Quintana e Carlos Drummond de Andrade tornaram-se mestres no processo, assim como escritores como Horácio Quiroga, Fabrício Carpinejar e Luís Fernando Veríssimo. Apesar de não ser recente, o recurso da concisão é considerado hoje a menina dos olhos da literatura. O poema acima é conciso: em uma estrofe, entendemos claramente a indefinição do amor da qual o poeta supostamente sofre.

Por fim, para o poeta que arrogou-se o direito de não ser criticado, vai um alerta: a poesia, quando natural, é treino e frequência de produção. Quando planejada, exige conhecimento teórico e lapidação. Tanto um quanto outro são processos válidos, mas exigem dos poetas um cuidado com as palavras ou, como diz Bráulio Tavares, "domínio da forma e compreensão do espírito". Para o que arrogou que uma poesia explícita não é poesia, vai outra dica: para ser poesia, não precisa fazer chorar, nem precisa ser o ápice da flecha atingindo a subjetividade. Basta ser realmente poesia de acordo com os critérios acima. Se os recursos são bem ou mal utilizados, é com o poeta.

(Este texto encontra-se também publicado no site do jornalista e poeta Linaldo Guedes Aquino)

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Coletivo Zona Sul*



Quase cinco da tarde, coletivo quase vazio, a moça se senta quase ao meu lado. Muito atraente, bem apanhada, mas tinha um nariz que denunciava fácil de onde vinha. Deve andar de ônibus à força.  Um porre. Até a combinação da roupa era incômoda, cabelos milimetricamente à moda da novela, que novela é mesmo? Ah, não interessa. É só mais uma coisa para arrancar dinheiro de pobre e fazer pessoas como aquela moça esfregar suas posses na cara dos outros. Olhava o relógio; minutos após olhava de novo e de novo, deve estar desconfortável, às vezes faço coisas desse tipo, assim, repetidas, para dizer que estou fazendo algo. Ao término da saia justa era possível ver uma pele de uma sensualidade incrível; mais sedutora ainda naquela pose, as pernas cruzadas, o olhar perdido na janela como quem não está nem aí para o resto do mundo. Melhor deixá-la quieta no seu mundinho ridículo.
            Não tardaria muito desceria do ônibus, enquanto a parada não chegava, subiu um senhor, camiseta com dizeres religiosos, uma caixinha com artigos chineses na mão. Boa tarde, irmãos, só queria um momento da sua atenção, estou aqui pra contar pra vocês o meu testemunho, que me livrou das drogas e me trouxe pra Jesus. A moça parece incomodada. Patricinha miserável! Pegou um fone de ouvido da bolsa, ligou o seu player, parecia alto. A bolsa era pequena e tinha uns adornos com frases em francês. Era francês ou russo? Tanto faz, não traduziria nem um nem outro. Incomodada, isso ela realmente estava. Deve ser atéia, ateu adora tripudiar dessas coisas. O rapaz passa por mim, tiro algumas moedas. Não, puxo uma nota que lhe valha alguma coisa a mais, entrego. A paz do senhor, irmão. Como eu previa, a branquela deixou que ele passasse, só se moveu pela freada brusca do ônibus. O homem desceu, seguimos viagem.
            A minha parada chegando, levantei logo e aguardei que o veículo parasse. Para minha surpresa, roça em mim a moça, vindo logo atrás. Olho meio assim, ela se afasta, incomodada, os fones ainda no ouvido. Mais uma freada, ela esbarra em mim. Ia lhe abrir caminho, mas ela se esgueirou, passou e desceu rápido, com indiferença, nem um pedido de desculpas ao menos.  Desci em seguida, ela segue na calçada, o vai e vem dos quadris destacando-se, salto ato. Meu telefone toca.
            Demorei um pouco falando, aproveitei para comentar com meu amigo, só você vendo, uma puta patricinha toda metidinha, chegar em casa vou escrever um texto sobre ela no meu blog. Ela vai ver... Conversamos outras bobagens e desliguei. Segui caminho, ia a uma feira de troca que estava acontecendo ali perto. Várias ações em prol da solidariedade. Chegando lá, um grupo de escritores lê contos para os presentes. Confesso que estava um pouco sem graça a coisa, chamou-me mais a atenção um grupo de crianças morrendo de rir mais ao fundo. Fui ver de perto, vamos dar um abraço no moço, gritou um palhaço entre elas. A criançada toda quase me derruba.
           — Boa tarde senhor, bem-vindo à Feira Solidária! Compra alguma lembrancinha? Você está ajudando estas criancinhas que vieram visitar a gente hoje, são do Lar Vida Feliz. Tem sacolinhas, cadernetas, tartaruguinha de porta...
            Quis pedir um daqueles itens artesanais, mas a voz não saiu; apesar da maquiagem pesada, de perto reconheci, olhei para baixo, fitei-lhe as belas pernas brancas, corei, recolhi-me à criançada sem maldade.
* conto escrito para a reunião especial do Clube do Conto na Feira Solidária de Tambaú, aos 11/02/2012. Tema: "Feira".

terça-feira, 24 de julho de 2012

Seu Lea



Para Antônio Lia Fook, meu avô materno


Era um homem alto e magro. Suas orelhas, largas. Seus olhos, estreitos. Marchava pela rua a passos firmes e rápidos; entretanto, a coluna meio curvada denunciava tensão. Ora a cabeça se refugiava nos pés, ora se aventurava no entorno. A certa altura, deteve-se na calçada, esquecendo-se da multidão que o atravessava em todas as direções, e fixou o olhar em um letreiro do outro lado da rua. Seus lábios se moveram, seus olhos se apertaram ainda mais. A testa franzida entendia, não entendia, mal entendia; enfim, sondou em volta de si e levou as mãos às orelhas, aturdido, tapando-as com força. Uma mão aproximou-se, estendida. Ele respondeu com um áspero gesto de dispensa. Recompôs-se e retomou o rumo, sem tirar os olhos dos pés outra vez. Ia balbuciando algo. Dali a poucos minutos, cruzou o portal da estação e estancou diante de um guichê. Do outro lado do balcão, uma voz grunhiu qualquer cumprimento. Fizeram-se um, dois, três, quatro, cinco segundos de silêncio. A voz aprumou-se na cadeira e ressoou a plenos pulmões:
— Então, o que deseja?
Os olhos procuraram algo nas letras iluminadas acima do vidro que os separava da voz. Os lábios se moveram frouxamente, emitindo algum som débil.
— Recife?! O senhor já está em Recife! Para onde deseja ir?! – a voz tornou-se impaciente.
Os lábios continuaram o movimento, novamente interrompido por uma bronca:
— Pará?! Não vendemos passagens para o Pará, senhor!
As mãos suplicaram paciência e vasculharam o bolso do paletó. A fila começava a formar-se atrás de si. Ele puxou um pedaço de papel amassado, desdobrou-o e, após passar os olhos no que estava escrito, estendeu-o à voz potente do outro lado.
— Ah, bom! Para quando?!
O dedo indicador pousou sobre um ponto específico do papel, onde o vendedor pôde ler algo como “domingo manhã”, grafado em letras hesitantes. Os lábios voltaram a bafejar algo pela última vez, ajudados pelas mãos que estiraram seis dedos contra o vidro.
— Seis passagens?
O homem meneou a cabeça em sinal de aprovação. Um sorriso aliviado e tímido insinuou-se nos cantos da boca.
— O salvo-conduto! O senhor é estrangeiro, não é?! O salvo-conduto!
As mãos mergulharam de novo no bolso do paletó e voltaram à tona com outro pedaço de papel, que não estava amassado, mas fora dobrado em quatro partes. O homem estendeu o documento ao outro, que o puxou com violência e fez algum esforço para soletrar o nome escrito:
— Lé-a… Fó-ók… Shi-am… É assim?!
O homem alto e magro aprumou-se sobre os pés. Suas orelhas, largas, pareceram estreitar-se. Seus olhos, estreitos, pareceram alargar-se. Finalmente, pronunciou algo semelhante ao que ouvira, mas os sons que saíram de sua boca não coincidiram com a leitura exata do vendedor. Os dois silenciaram por um instante. O outro decidiu-se:
— Bem, vale o que está escrito!
Uma, duas, três, quatro, cinco, seis carimbadas. O homem lançou sobre o balcão um maço de notas sujas e envelhecidas, que o vendedor organizou e contou a contragosto.
— Suas passagens, seu troco. Próximo!
O homem recolheu com as mãos, em formato de concha, o emaranhado de papéis que o outro lhe entregara. Deu a volta e caminhou em direção ao mesmo portal por onde entrara. Já no batente externo, ouviu o tilintar de três moedas que escorreram entre seus dedos e tombaram no chão. Deteve-se. Segurou com firmeza as passagens nas pontas de dois dedos e, fazendo da palma uma banqueta, organizou as cédulas, guardou-as no bolso. Em seguida, ajoelhou-se em direção às moedas e, enquanto as catava, olhou de volta para as mãos. Revistou-as, e também ao bolso. Estremeceu. Ergueu-se e olhou em volta de si. Sua face exibia o desespero. Então, virou-se para o interior do edifício e viu o guichê onde fora atendido. Retornou a passos largos. Fez algum gesto de licença à pessoa da vez e bateu com força o vidro. Traçou um quadrilátero no ar com os dedos indicadores. Ouviu a mesma voz vigorosa e impaciente de poucos minutos anteriores:
— Ah, aí está! Tome!
Curvou-se e sorriu levemente. Já na rua, deteve-se. Estendeu contra a luz o documento, antes de tornar a dobrá-lo em quatro partes. Viu sua própria foto colada no canto superior direito. Acariciou o rosto. Passou a vista sobre as letras, enquanto movia os lábios sem emitir qualquer som. Finalmente, soletrou:
— Lé-a... Fó-ók... Shi-am? Hummm! – e sacudiu horizontalmente a cabeça. 

(continua na próxima postagem do autor)

vinil contrário





É claro ainda e acendo a luz para ver o óbvio. Você se espalha quando passo que te amasso com o olhar e te amo mais que morro. Você não entende de amor nem alpinismo. Nem cinismo você entende. Logo, nada sabe de mim. Outra noite, quando você chegou irado de trabalho e das ruas, eu pensei em consolar tua raiva com dose cavalar de mim. Aquela coisa de se abrir, salivar de vinho e encher a sala de palavra doce. Tudo adocicado pra não falhar. Mas você, esquivado feito bicho assustado, fugiu pro quarto, tomou banho e enfiou a cara no jornal. Leia e morra, pensei. Você não morreu. E eu odeio falar em casamento. Casar é morrer, morar junto é sufoco e quem te disse que eu queria envelhecer assim, com você e toda a parafernália que a gente acumula feito duas mulas carregando peso em excesso? Esta merda de sacramento que sufoca. E eu casei, jurei, abri as pernas e consolidei o fato com feto e fraldas de estandarte. Éramos livres antes disso? Acredito que, quando dissemos sim, o não nos afetou. A gente passou a viver de negação. Negando tudo: dia, noite, beijo na boca, passeio de mãos dadas, e eu daria tudo para ter nada de novo e ser tua como naquele dia que sentamos na areia, de violão e música na boca, e você disse que ficaria pra sempre. Mas não precisava ser assim. Meu vinil toca ao contrário. E, em outra vida, prometo que não te castro. De eterno, quero só a memória. Do amor, quero contar história. E, romântica, eu declaro fim.

domingo, 8 de julho de 2012

Comentário sobre o livro "Rapunzel e outros poemas da infância", de Jairo Cézar

Beatriz, filha de Jairo, e garota propaganda do "Rapunzel..."
Beatriz - Inspiradora e garota 
propaganda do "Rapunzel..."


Anda menina,
 vem sem cuidado,
livro fechado
não manda recado.
(Jairo Cezar - É hora de ler
In: Rapunzel e outros poemas da infância)


“É hora de ler”. Essa parece ser a frase que sintetiza o estatuto atual da leitura em nossa sociedade − ao menos a nível de expectativas. Atualmente, uma parcela dos educadores, agentes midiáticos, militantes culturais e gestores públicos vêm chamando a atenção para o papel da leitura na formação de cidadãos criativos e com senso crítico apurado, sobretudo quando incentivados a manter uma relação de proximidade com a leitura desde o início da infância.
Essa perspectiva é também defendida pelo poeta Jairo Cezar, autor de “Rapunzel e outros poemas da infância” (Forma editorial, 2012), seja por meio de ações como educador e ativista cultural, seja no interior de sua própria casa, durante o educar cotidiano de sua filha Beatriz, a quem o referido livro é dedicado. No entanto, “Rapunzel...” não é uma obra que visa “apenas” incentivar o hábito da leitura junto ao público infantil − objetivo que em si já poderia ser visto como de grande valor, mas que não seria bem-sucedido se a obra não contasse também com uma qualidade estética apurada (alusiva, nesse caso, ao conjunto poemas/ilustrações).
O livro contém (re)leituras poéticas de histórias como “Pinóquio”, “Rapunzel”, “Os três porquinhos”,“O Pequeno Príncipe”, “A Bela e a Fera”, “Peter Pan”... e de episódios vividos por outros seres, que por vezes adquirem um significado mágico no universo infantil, como as joaninhas, girafas e as borboletas.
Conta ainda com belas ilustrações que ambientam as poesias ou permitem aos leitores − na segunda parte da obra – divertir-se enquanto colorem imagens vinculadas aos poemas que acabaram de ler.
É desses livros que permitem, aos nossos pequenos, ter “em mãos” um objeto que possibilite que suas mentes sejam regadas, ainda mais, com a fantasia, dando-lhes mais um momento, entre uma e outra descoberta diária, de inserção do maravilhoso em seu cotidiano.
 “Rapunzel...” é, além disso, do tipo de obra que um pai compra para presentear o filho, mas acaba, ele mesmo, parado, a folhear as páginas, ver e rever as ilustrações ou rememorar as obras a que teve contato em sua própria infância...
Em síntese, com seu “Rapunzel...”, Jairo Cezar estreia na literatura infantil mostrando que o gênero – e, em especial como ele o produz− não se constitui como uma literatura menor.
Estreia trazendo muitas expectativas para os seus leitores e tentando mostrar, em consonância com o atual contexto sócio-cultural vivido por nosso país, que: não!, “livro fechado não manda recado”.