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domingo, 19 de agosto de 2012

Uma dica de humildade para os poetas


Discuti esses dias com duas figurinhas carimbadas que, no auge de sua sapiência automonoteísta, simplesmente adotaram dois caminhos típicos de quem faz fotossíntese com a luz da própria arrogância. A primeira pessoa foi um poeta que escreve versos ruins e, quando criticado com educação, devolve pondo em dúvida os conhecimentos ou a idoneidade de quem fez a crítica. A segunda pessoa fez justamente uma crítica, tomando um ótimo poema de um conhecido e simplesmente dizendo que esse poema era uma "bosta", para não apontar nomes piores, e ainda afirmando não ser poesia. Pois bem, ambos, um e outro, não sabem o que é poesia, fato! Academicamente falando, um bom poema apresenta quatro características essenciais que devem ser preservadas: estranheza, particularização, densidade semântica e concisão. Todas trabalham em conjunto. Dificilmente acham-se poemas realmente líricos em que, na presença de um, os outros três não estejam presentes (não que seja impossível a ausência de um deles, mas é muitíssimo raro encontrar a ausência de um dos quatro elementos em boa poesia). Obviamente, aos leitores atentos, percebe-se minha predileção pelo Formalismo Russo, mas não vem ao caso. Expliquemos o que é cada um desses elementos. Leiam a seguinte estrofe:

"Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;"
Clássica estrofe camoniana

Em primeiro lugar, a Estranheza ou Desautomatização da Linguagem. A língua falada e escrita, na maior parte das vezes, se apresenta em torno número mais ou menos previsível de sentenças possíveis, determinadas pelos padrões (ou regras) e pelas variantes que lhe são comuns. Ela é imediata aos eventos, ou seja, estrutura-se sobre um formato mais ou menos comum sobre o qual não precisamos pensar muito a respeito. Significa que, no nosso cotidiano, a língua se manifesta de forma automática. Como desautomatização entendemos capacidade que o gênero lírico possui de romper com esse automatismo da língua, tanto que se eu pronunciar a oração: "o fogo me queimou e está ardendo ainda", estarei usando uma sentença automática, já previsível nos padrões e nas múltiplas variantes de uma língua. Se eu pronunciar a estrofe camoniana acima, usarei as mesmas regras da língua, mas criando uma sentença que não estava no campo da previsibilidade, afinal, não falamos intencionalmente, o tempo todo, rimando, ritmando e modulando, e nem mesmo com os cruzamentos semânticos que ocorrem nesse poema. Em resumo: a poesia gera estranheza no receptor da mensagem nos níveis sintáticos, semânticos e fonológicos.

Em segundo lugar, a particularização. É comum à linguagem a generalização e a instanciação. Quando nos referimos aos objetos, ou generalizamos (TODO homem é mortal) ou instanciamos (ALGUNS homens são velhos), mas na liguagem lírica, tendemos a singularizar (O homem é mortal e velho), nos concentramos não em coisas gerais ou instanciais, mas em elementos definidos. Pode parecer estranho falar isso em português, que possui artigos definidos, mas só singularizamos quando nos referimos a alguém ou a algo específicos. Em lógica dos termos e dos predicados, por exemplo, não é nada fácil lidar com uma proposição como "Paulo viajou ontem", pois tratar com determinações em lógica (e em linguagem) gera múltiplos problemas como a limitação sentencial da idéia que se quer exprimir. Mas na poesia "Paulo" é um elemento de construção central (personagem). No caso da estrofe camoniana, o "Amor" torna-se singularizado, separa-se da definição geral do que seja o amor, e da definição instancial. O amor torna-se particular.

A densidade semântica impera na presença de muitas ideias ou níveis linguísticos na poesia. A língua, ou a linguagem como um todo, apresenta sempre um juízo de valor. Significa que, quando criamos frases, proposições, orações, sentenças, textos ou discursos, estamos na verdade julgando, medindo e atribuindo um valor sobre alguma coisa. Esse é outro ponto de ruptura em relação à linguagem lírica, pois esta apresenta-se em um meio termo entre o juízo de valor e a ausência total de valoração de significados. Significa que todo poema é um conjunto de sentenças solipsistas e autocentradas, com significado em si mesmas. A esse deslocamento dos valores, damos o nome de Quase-Juízos. Esses quase-juízos é que garatem a densidade da poesia (ou, na linguagem de Wayne Booth, geram uma resposta do leitor apropriada ao nível linguístico que se evidencia à sua classe de indivíduos). Muita coisa é dita em um haicai, ou em um poema-pílula. Outro nome que podemos dar à densidade semântica é polissemia. A linguagem comum possui um limite de interpretações possíveis (valores dados pelo leitor) de suas sentenças, limites esses que são determinados pelo comum acordo dos membros de uma comunidade linguística. O lirismo, porém, não só exige a polissemia como a toma como objetivo último. Portanto, levar poemas e textos literários ao pé da letra é um risco tremendo quando falamos de textos religiosos, uma vez que estes, por serem em essência poéticos, tendem a alcançar alto grau polissêmico. Que dizer então de um poema político, engajado, devocional, metafísico ou sentimentalista? A estrofe é densa nesse sentido: o Amor oscila entre um juízo claro e uma ausência de juízo.

Mas, sem a concisão, a densidade semântica não seria nada. A concisão é a propriedade do texto (e a habilidade do poeta) de condensar muitas ideias em uma quantidade mínima de texto. Poetas como Sérgio de Castro Pinto, Mário Quintana e Carlos Drummond de Andrade tornaram-se mestres no processo, assim como escritores como Horácio Quiroga, Fabrício Carpinejar e Luís Fernando Veríssimo. Apesar de não ser recente, o recurso da concisão é considerado hoje a menina dos olhos da literatura. O poema acima é conciso: em uma estrofe, entendemos claramente a indefinição do amor da qual o poeta supostamente sofre.

Por fim, para o poeta que arrogou-se o direito de não ser criticado, vai um alerta: a poesia, quando natural, é treino e frequência de produção. Quando planejada, exige conhecimento teórico e lapidação. Tanto um quanto outro são processos válidos, mas exigem dos poetas um cuidado com as palavras ou, como diz Bráulio Tavares, "domínio da forma e compreensão do espírito". Para o que arrogou que uma poesia explícita não é poesia, vai outra dica: para ser poesia, não precisa fazer chorar, nem precisa ser o ápice da flecha atingindo a subjetividade. Basta ser realmente poesia de acordo com os critérios acima. Se os recursos são bem ou mal utilizados, é com o poeta.

(Este texto encontra-se também publicado no site do jornalista e poeta Linaldo Guedes Aquino)

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